Nesta segunda (23/3), o número global de infectados pelo coronavírus chegou ao patamar de mais de 353 mil, segundo dados oficiais. O mês de março se revela agosto, mês do desgosto. Explica-se: março não vai ficar para a história apenas por esta mais recente pandemia. Foi nesse mesmo período, há exatos 102 anos, que se tem registro da mãe de todas elas, a primeira a atingir todos os continentes. Segundo documentos, foi em 4 de março quando a gripe espanhola – que, apesar do nome, nada tem a ver com a Espanha – começou rapidamente a se alastrar, a partir de uma forte e desconhecida virose contraída por um soldado da base militar de Riley, Kansas, onde recrutas eram treinados pelo governo americano para lutar na 1ª Guerra Mundial. Nesse acampamento, na mesma semana, outros 200 militares seriam nocauteados pela doença para, em apenas 14 dias, mais outros mil darem baixa no hospital, dando início a uma devastadora onda se que espalhou pelo planeta, através daqueles que foram lutar na Europa contra os alemães. Estima-se que morreram entre 50 a 100 milhões de pessoas, mais que somados todos os mortos abatidos nas duas grandes guerras juntas. Foram cerca de 500 milhões de contaminados, aproximadamente 27% da então população global. No Brasil, 35 mil pessoas faleceram, incluindo o então presidente Rodrigues Alves. Isso numa época em que a circulação entre os países estava longe de alcançar os níveis atuais, o que justifica a preocupação de todas (ou quase) autoridades governamentais.

Gripe espanhola (Foto: Reprodução)

Esse tsunami viral coincidiu com o florescimento do cinema como uma poderosa indústria que, assim como a gripe espanhola, no início do século passado contagiava rapidamente planeta. Quando a pandemia de 1918 começou, a Sétima Arte já havia se configurado como uma importante atividade econômica em países tão diversos quanto a França, Itália e, claro, os Estados Unidos, com Hollywood assumindo a dianteira da produção audiovisual global numa velocidade comparável à daquela gripe que avançava do Ocidente ao Oriente. Aproveitando esse paralelo, ÁS relaciona abaixo uma lista de 20 produções cinematográficas essenciais para serem conferidas nesses tempos de confinamento.

Um elenco composto por Dustin Hoffman, Renee Russo, Kevin Spacey, Morgan Freeman, Donald Sutherland, Cuba Gooding Jr. e Patrick Dempsey luta contra a contaminação em larga escala em “Epidemia”, drama de ação de 1995 que antecipou a fornada de filmes-catástrofe virais que explodiu após o 11 de setembro, impulsionada pelo medo. No longa, um macaco portador do ébola, trazido por contrabando da África, é o agente que infecta o paciente zero. (Foto: Reprodução)

Algumas realizações, como “Epidemia” (1995) e “Contágio” (2011), procuram traçar um panorama realista de como uma epidemia avassaladora atingiria a humanidade, e quais seriam as providências a serem tomadas pelas autoridades para contê-las.

A francesa Marion Cotillard faz parte do cast de “Contágio”, produção que explora de forma realista a expansão de uma pandemia em diversos lugares do planeta, suas consequências e as diferentes formas de combatê-la. Pela sua linguagem ligeiramente documental, e pelo realismo das cenas, essa produção tem sido procurada nestes últimos dias pelo público nos canais de streaming (Foto: Reprodução)

Outras, mais fantasiosas ou de cunho apocalíptico, usam o medo de uma contaminação transcontinental como premissa para o exercício estilístico do horror (“Extermínio“, 2002, e “A epidemia“, 2010); para desenvolver alegorias (“O sétimo selo“, 1957); flertar com o sobrenatural (“A dança da morte“, 1994); ou ainda estabelecer um cruel patchwork da condição humana (“Pânico nas ruas“, 1950, “Filhos da esperança“, 2006, e “Vírus“, 2009). Por fim, há aquelas que se aproveitam desse mote para se aproximar do sci-fi levantando questões que esbarram no sentido original da ficção científica, dentro dos cânones cunhados pela literatura de Isaac Asimov e Ray Bradbury. É o caso do “Enigma de Andrômeda” (1971). Confira tudo antes que o mundo acabe.

“Extermínio” é produção inglesa que veio na aba dos ataques terroristas de 2001, mesclando a sensação de fim de mundo causada por uma epidemia de proporções gigantescas com a atmosfera de desesperança & horror dos filmes de zumbi (Foto: Reprodução)

PELÍCULAS E PANDEMIAS: O CINEMA SEMPRE SE ALIMENTOU DO MEDO DO PÚBLICO DE QUE O MUNDO ACABASSE, NUTRINDO AS PLATEIAS COM TEORIAS CONSPIRATÓRIAS ACERCA DO ARMAGEDDON, DOENÇAS GLOBAIS E APOCALIPSES BIOLÓGICOS. O OBJETIVO É UM SÓ: FATURAR UMA NOTA MAIS PRETA QUE A PESTE NEGRA:

“Epidemia” (Outbreak, de Wolfgang Petersen, Warner Bros., 1995)  

A primeira parte dessa realização impressiona pelas sequências de closes e primeiríssimos planos que detalham a contaminação de indivíduo para indivíduo, através de secreções como gotículas de espirros. Depois da metade, o longa perde força quando envereda pela luta de uma equipe médica para driblar os militares, dispostos a sacrificar a população de uma região em quarentena para conter a expansão da doença.

“Epidemia” leva ao pé da letra a proteção através de artifícios como uniformes vedados a vácuo. É o look-camisinha da Era Aids. O longa antecipou a nova leva de filmes-catástrofe que seria inaugurada com pompa no ano seguinte, com “Independence Day” (Foto: Reprodução)

“Contágio” (Contagion, de Steven Soderbergh, Warner Bros., 2011)

Essa produção do diretor de “Sexo, mentiras e videoteipe” (1989) e “Erin Brockovich, uma mulher de talento” (2000) é quase uma premonição daquilo que está acontecendo no mundo agora. Após um rega-bofe, uma executiva americana (Gwyneth Paltrow) a serviço na China contrai o vírus que, nessa ficção, é mutação de um micróbio hospedado por morcegos que infecta a carne suína. Ao voltar para casa, ela se torna a paciente zero numa rota que espalha essa doença de proporções catastróficas em velocidade “The Flash”.

“Contágio” apresenta sequências hospitalares de extremo realismo (Foto: Reprodução)

Ponto forte de “Contágio”: o esfacelamento do serviços públicos pela dimensão pandêmica é mostrado passo a passo, assim como o medo da população, sua opção pela reclusão por temor de contaminação, a interrupção do fluxo da informação confiável e os efeitos da boataria. Detalhe: na época do filme, as mídias sociais estavam apenas começando e não havia ainda fake news… (Foto: Reprodução)

Jude Law interpreta um jornalista que bate de frente com o poder público, motivado pelo desejo de provar que as autoridades estão mancomunadas com os interesses da indústria farmacêutica (Foto: Reprodução)

Por fim, o drama de Soderbergh reproduz a dificuldade de sobrevivência dos não-infectados, impactados pela interrupção dos canais de abastecimento e pela corrida desenfreada para estocar comida e itens de necessidade (Foto: Reprodução)

O Enigma de Andrômeda” (The Andromeda Strain, de Robert Wise, Universal Pictures, 1971)

Esse clássico sci-fi cabeça capitaneado pelo diretor de “A Noviça Rebelde” é da cepa de produções que tomaram de assalto as telas a partir de “2001 -uma odisseia espacial“. Na narrativa, a população de uma cidadezinha no caixa-prego americano é dizimada por um vírus extraterrestre trazido por um meteorito, à exceção de um velho alcoólatra e um bebê, imunes. Agentes sanitários interditam o local para descobrir o que transforma o sangue dos infectados em poeira, ao longo de um sofrido processo de enfermidade respiratória. O ritmo desse clássico, que ganhou remake em 2008, é lento e cerebral, contra-indicado para aqueles que cresceram à base dos malabarismos pirotécnicos dos efeitos digitais. Traduzindo: se ama a franquia “Velozes e furiosos“, não veja.

Esqueça o caos nos grandes centros urbanos: o fim do mundo  em “O Enigma de Andrômeda” é no… Fim do mundo! Aliás, onde Judas perdeu as botas!(Foto: Reprodução)

“Extermínio” (28 Days Later, DNA Films e Twentieth Century Fox, de Danny Boyle, 2002):

Depois de se consagrar com “Cova Rasa“, Trainspotting: sem limites” e “A praia“, Danny Boyle embarcou na histeria do 11 de setembro e fez um filme nervoso, no qual uma Londres dizimada por uma peste que leva 28 dias para dar cabo dos infectados é cenário para um rapaz recém-saído do coma (Cyllian Murphy). Parece um filme de zumbis aditivados por drogas sintéticas, em convulsão na The Week, mas não é. Os raivosos e sanguinolentos morimbundos correm como maratonistas e são o resultado de um acidente causado por ambientalistas que invadem um laboratório que testava uma nova droga em macacos. Assustador, assim como a continuação de 2007, que vai fazer você desperdiçar um frasco de floral de bach para conseguir dormir.

No cenário apocalíptico de Danny Boyle, a Swinging London se parece com a manutenção que o bispo-prefeito Crivella costuma dedicar ao centro da Cidade Maravilhosa. Não sobrou ninguém; então dá para dar um rolê com o mesmo pijama que você está usando na quarentena do corona (Foto: Reprodução)

Perigo, perigo! Os doentes de “Extermínio” são chegadíssimos a uma mordiscadela. Nem dá para reclamar, a contaminação é imediata: o vírus se espalha pela corrente sanguínea em minutos, deixando o doente mais irracional e agressivo que presidente do Brasil em dias de pandemia (Foto: Reprodução)

“Os 12 macacos” (Twelve Monkeys, de Terry Gilliam, Universal Pictures, 1995): 

Por falar em macacos, esse estranhíssimo sci-fi (e cult movie) fala das viagens temporais de um pesquisador (Bruce Willis) que vai e vem de um futuro onde a humanidade foi reduzida a 10% por conta de uma pandemia. O restante vive no subterrâneo tentando mudar o passado. Nesta produção – mais uma na qual o diretor dialoga com a tênue linha que separa a sanidade da loucura -, Brad Pitt é o cara: interpreta o filho abilolado de um biólogo e integrante de um grupo ativista que não concorda com o uso de animais em pesquisas científicas. Estão prontos para soltar os bichos -literalmente! -, e tudo leva o protagonista a crer que ele é o bioterrorista que vai deflagar a peste. Porém, nesse jogo de verdade e imaginação, o buraco pode ser mais embaixo que o muquifo onde o mocinho se refugia no futuro…

Camisinha gigante”: fruto da era em que o HIV ainda era obrigatoriamente passaporte para a morte, o look que protege da contaminação o antiheroi vivido por Bruce Willis é mais um elemento dos jogos semióticos propostos pelo diretor em “12 macacos”. Essa produção é inspirada no curta francês La Jetée(1962), do multimídia francês Chris Marker, no qual ele conta a história do longa de Gilliam com uma sequência de imagens paradas narradas em off, evocando as memórias marcadas no cérebro do tal navegador do tempo (Foto: Reprodução)

Histeria e medo de contaminação em “12 macacos”: até os caricatos cientistas desse futuro apocalíptico apresentado por Terry Gilliam vestem jalecos embalados por “camisinhas”. Representação da prevenção ao vírus levada ao extremo numa era de vida ou morte? Uma ótima série inspirada no filme foi veiculada na tv a cabo, entre 2015 e 2017, mas quase ninguém soube ou assistiu (Foto: Reprodução)

“A noite devorou o mundo” (La nuit a devoré le onde, de Dominique Rocher, Canal+ e outros, 2018):

O foco desse artigo não são os filmes de zumbi, mas esse terror francês vale aqui pelo seu misto de aventura eletrizante com longa contemplativo, com longos silêncios e busca de densidade típica da produção de um país que inventou a nouvelle vague. O protagonista vivido por Anders Danielsen Lie é pego de rabeta pelo caos que virou uma Paris infectada quando acorda, após dar um PT ao ir recolher seus trapinhos na casa da ex e discutir com o novo amado da moça, que está dando uma festa. Ao acordar, na manhã seguinte, e ver que o planeta está de pernas para o ar, sua inadequação com a vida à sua volta é exarcebada. Afinal, ele se torna o único não-doente, peixe fora d’água. Um libelo da solidão entre ruas repletas de canibais. Parece duplo sentido? É isso que o diretor quer. Bom para a turma que mora sozinha e está em quarentena…

Imensidão azul: o diretor de “A noite devorou o mundo” abusa de cenas azuladas num filme de zumbi para reforçar o caráter melancólico de um protagonista em confinamento solitário (Foto: Reprodução)

“Vírus” (Virus, de Aashiq Abu, Phars Film, 2019):

Apesar de reproduzir uma epidemia local, merece estar nessa lista. Aclamado pela crítica, esse filme indiano falado em malaio é um eletrizante thriller médico que procura retratar os bastidores de um fato real: a epidemia ocorrida um ano antes que levou ao caos o pequeno Querala, estado indiano situado na Costa Malabar, famoso por suas praias, vida selvagem e ambiente tropical idílico. A crueza de suas cenas, inclusive as passadas em hospitais, revela que o Estados Unidos não detêm a primazia dos filmes-catástrofe que retratam desastres biológicos. Imperdível.

A primeira impressão, antes de o filme começar, considerando o fascínio provocado pelos musicais made in Bollywood, é que a produção, com mulheres em sahri e homens em trajes locais, vai ser tomada a qualquer momento por números de dancinha. Ledo engano. Basta a projeção dar partida para a tensão começar,que quem dança é o seu queixo, trepidando de nervoso (Foto: Reprodução)

“Vírus” (Carriers, de David Pastor e Àlex Pastor, Paramount Vantage, 2009):

Homônimo da produção indiana, “Vírus” pretende dar cabo de uma questão essencial nesses tempos de corona: a desconfiança aliada ao medo de ser contaminado, levando ao isolamento turbinado por atitudes egoístas. Não se trata de confinamento em prol de um bem maior. Aqui a questão é outra, e a lição está ali: o aumento da desilusão, a falta de esperança e o sentido de sobrevivência animal, revestidos de uma lógica aparentemente coerente, conduziriam, no final, à solidão, esse talvez o maior ingrediente da entrega individual a uma pandemia global. Ética na crise? Exato.

Não é de todo impossível que alguém tenha mostrado esse lacônico longa-metragem ao presidente, antes de ele decretar a retirada daqueles brasileiros radicados em Wuhan, em fevereiro, quando antes havia afirmado que os deixaria lá, à míngua, para evitar um possível contágio em massa no Pindorama. Fundamental para que pretende saquear os estoques de papel higiênico dos supermercados, sem se dar conta de que a falta de asseio do próximo, causada pelo individualismo desenfreado, poderia por em risco a própria saúde, no caso da proliferação de dejetos em vias públicas.

Em “Vírus”, as highways desérticas de uma civilização em convulsão são metáfora para as escolhas feitas naqueles momentos-limite (Foto: Reprodução)

“Ensaio sobre a cegueira” (Blindness, de Fernando Meirelles, O2 Filmes,  Focus Pictures e outros, 2008): 

Ninguém solta a mão de ninguém. Baseada na obra do escritor português José Saramago, dirigida e produzida pelo diretor de “Cidade de Deus“,  essa alegoria passada numa metrópole não especificada narra o colapso da civilização quando a grande maioria de seus habitantes perde a visão graças a uma epidemia. A decadência dos personagens e da cidade são espelho para a degradação moral causada pelo desespero. O contraste entre aqueles que se entregam ao altruísmo e os que procuram sobreviver à à revelia do sentido de comunidade são destaque nessa realização com um all-star cast internacional que inclui os americanos Julianne MooreMark Ruffallo e Danny Glover, o mexicano Gael García Bernal , a nipoamericana Sandra Oh e a brasileira Alice Braga.

Cordão humano: o grupo de infectados pela pandemia de cegueira, incluído aí o médico, é conduzido pela mulher deste – única imune ao vírus, sem que se explique em momento algum o porquê – através de uma urbe largada ao abandono. Cada personagem, todos sem nome, reproduz um arquétipo diferente do espectro social que procura destrinchar o comportamento diante de uma crise sem precedentes (Foto: Reprodução)

“Filhos da esperança” (Children of Men, de Alfonso Cuarón, Universal Pictures, 2006): 

Passado na Inglaterra, esse curioso longa futurista apocalíptico é dirigido pelo mexicano Cuarón, Oscar de ‘Melhor Diretor’ por “Gravidade”  e “Roma“. Nesta distopia, a espécie humana padece por uma estranha pandemia: as mulheres do planeta se tornaram inférteis e, por isso, o homo sapiens corre o risco de extinção por impossibilidade de procriação. O realizador usa sua expertise enquanto nativo de um país visto pelos Estados Unidos como cucaracha para estabelecer, numa narrativa repleta de desesperança, pontos de vista dos desfavorecidos, imigrantes ilegais e párias de uma sociedade cruel, que não protege os indivíduos em sua totalidade, apenas os privilegiados.

“Filhos da esperança” oferece, ao longo da projeção, a presença da primeira grávida depois de décadas de infertilidade na Terra, fenômeno capaz de abalar a corda bamba de uma sociedade fragilizada pelo vislumbre do ocaso (Foto: Reprodução)

“A gripe” (Gamgi, de Sung-Su Kim, iLoveCinema e ouros, 2013):

Poucos filmes-catástrofe americanos conseguem ser mais contundentes que esse sul-coreano sobre uma cidade-satélite de Seul tomada por uma epidemia, sitiada pelas autoridades para que a doença não se alastre. O cinema desse país sabe ser visceral no horror, e o zombie movieTrem para Busan” atesta isso. Em “A gripe”, todos os ingredientes frenéticos de um filme de zumbi estão ali, com a diferença que a tal influenza é muito mais plausível que uma hecatombe de mortos-vivos. Então, o público é enredado por um desfecho chocante. O único porém são algumas interpretações over, chorosas demais, que parecem fake ao olhar ocidental, mas deve-se dar um desconto: é o estilo de atuação típico daquela cinematografia.

“A gripe” apresenta cenas de embrulhar o estômago muito mais impactantes que as de uma produção sobre o apocalipse zumbi. A razão? A percepção da plateia do quanto aquilo pode ser tornar real! (Foto: Reprodução)

A população de Bundang, subúrbio de Seul – dentre infectados e os ainda saudáveis, mas aterrorizados – passa da perplexidade à histeria no asiático “A gripe” (Foto: Reprodução)

“Ao cair da noite” (It comes at night, de Trey Edward Shults, Animal Kingdom, 2017): 

Esta inquietante realização lida com o pavor que a dupla claustrofobia/ausência de intimidade pode causar na percepção do indivíduo. Com narrativa pouco convencional, que não explora as razões pelas quais uma mortal pandemia forçou famílias a se enclausurarem em propriedades ermas nas florestas, é soco no estômago. O cotidiano de um núcleo familiar é bruscamente alterado pela chegada de outra que lhe pede abrigo. O que querem, afinal? Devíamos ter-lhes dado teto? Essas perguntas ecoam ao longo da projeção, ancoradas em jogos de sombra, plano fechados e o distanciamento dos personagens nas cenas externas,reforçando a sensação de confinamento, por sua vez potencializada pela opção de nunca revelar ao público exatamente aquilo que está acontecendo. É terror psicológico de primeiríssima, desenvolvido a partir da tal doença implacável que tomou conta do planeta.

O tipo de lente usada pelo diretor Shults em “Ao cair da noite” amplifica o sentido de isolamento de uma família que se refugia de uma pandemia (Foto: Reprodução)

“Ao cair da noite” explora o pavor capaz de tomar conta das pessoas diante de ameaças externas (Foto: Reprodução)

“A Travessia de Cassandra” (The Cassandra Crossing, de George Pan Cosmaos, Twentieth Century Fox, 1976):

Típico exemplar do cinemão-catástrofe dos anos 1970 – e um dos piores -, essa produção inteiramente passada dentro de um trem narra, em ritmo de ação, a tentativa de capturar um terrorista que traz em seu poder um letal vírus roubado de um laboratório. O elenco estelar composto por, entre outros, Sophia Loren, Richard Harris, Martin Sheen, Burt Lancaster, Ava Gardner, Ingrid Thulin, O.J.Simpson, Lee Strassberg e Lionel Stander não impediu de o longa se tornar um fracasso, embora carregue nas costas uma forma de fazer cinema que marcou a década.

Receita de bolo: seguindo o padrão do gênero, astros da Era de Ouro e alguns novos talentos de Hollywood compunham o cast desse thriller sobre um trem desgovernado com uma poderosa arma bioquímica a bordo, em plena guerra fria (Foto: Reprodução)

“O sétimo selo” (Det sjunde inseglet, de Ingmar Bergman, Svensk Filmindustri, 1957):  

A imagem é uma das mais conhecidas do cinema europeu, talvez ao lado da cena do banho na Fontana Di Trevi de “A doce vida”. Durante os anos em que a Europa foi devastada pela peste negra, um cavaleiro medieval (Max Von Sydow) joga xadrez com a morte em carne e osso. Entre muitas significações, o duelo no tabuleiro representa a eterna luta para driblar um destino inevitável. Para se manter vivo, é preciso jogar, caso contrário o resultado é um só: um cheque-mate na existência, ainda que, mais cedo ou mais tarde, todos sempre acabem perdendo.

A deslumbrante fotografia em preto & branco de “O sétimo selo” reforça a estranheza pretendida por Bergman nessa peculiar alegoria que tira proveito do imaginário da Idade das Trevas (Foto: Reprodução)

Uma das sequências mais assustadoras – e poéticas! – de “O sétimo selo” é a dança da morte, que reproduz em silhuetas os típicos cordões presentes na iconografia cristã medieval, criados para manter a humanidade presa aos dogmas religiosos da vida eterna. Na dança da morte, pouco importa a origem daquele que foi colhido por ela, seja rico ou pobre, rei ou vassalo, papa ou camponês. Nesta ambígua cena final, as vítimas da peste bubônica são conduzidas pela personificação da morte num bonde macabro em dupla produção de sentidos: a inexorável tragédia de ser tragado desta vida contra a vontade, se contorcendo, e o desejo de alcançar a vida eterna promulgado pela cristandade, numa celebração (Foto: Reprodução)

“Pânico nas ruas” (Panic in the Streets, de Elia Kazan, Twentieth Century Fox, 1950):

Um médico (Richard Widmark) e um capitão de polícia (Paul Douglas) têm apenas 48 horas para localizar dois fugitivos contaminados pelas ruas de Nova Orleans, antes que eles iniciem uma epidemia de pneumonia neste filme noir que virou, além clássico, um painel da natureza humana.

Zero Mostel (à esq.) e Jack Palance (àdir.) são os dois marginais portadores de uma doença que, se deflagrada, rapidamente pode se tornar uma pandemia em “Pânico nas ruas” (Foto: Reprodução)

“Eu sou a lenda” (I am Legend, de Francis Lawrence, Warner Bros., 2007):  

Batidíssimo, mas digno de entrar nessa lista, “Eu sou a lenda” é a terceira versão de um conto homônimo criado por um roteirista lendário, Richard Matheson. Ele contribuiu, inclusive, no roteiro dessa primeira investida cinematográfica da sombria fábula sobre o último homem no planeta, um cientista imune a uma pandemia que transformou toda a humanidade em uma espécie de vampiro, que contamina os outros pela saliva e sangue. Nesta mais recente adaptação, cabe a Will Smith o papel que já foi de Charlton Heston (“A última esperança da Terra“, 1971) e de  Vincent Pryce (“Mortos que matam“, 1964). Embora nenhum dos três filmes versem sobre mortos-vivos, mas infectados cuja humanidade lhes foi retirada pela doença, o filme original serviu de arcabouço para George Romero criar, quatro anos depois, a matriz dos filmes de zumbi modernos, “A noite dos mortos-vivos“. Por isso, a dica, no fundo, vale por três.

Em “Eu sou a lenda”, o derradeiro representante da espécie humana é o “vírus” que deve ser exterminado por uma nova espécie que eclodiu a partir de uma pandemia. O blockbuster dirigido por Francis Lawrence tira proveito da febre dos filmes de zumbi para caracterizar os mutantes desta praga como um mix de desmortos e vampiros. No fundo, eles estão vivinhos da silva; só evoluíram a partir da doença (Foto: Reprodução)

Nas duas últimas versões, cartões-postais de uma silenciosa Nova York degradada servem como moldura para sublinhar a principal questão da narrativa: a solidão. Até que ponto o último homem saudável não se ressente dos contaminados, reduzidos à condição abaixo da barbárie, a de animais (2007), ou à de uma seita quase religiosa (1971), mas, por outro lado, em comunhão entre si? Em todas as produções, a questão do não-pertencimento vem à superfície.

De Big Apple a savana: os efeitos digitais de “Eu sou a lenda” exploram a ruína da cidade que nunca dormia, com arranha-ceus semi-destruídos e praças e ruas tomadas pela vegetação (Foto: Reprodução)

Em “A última esperança da Terra”, o Dr. Robert Neville (Charlon Heston) circula por uma Nova York deserta. Na época em que o filme foi realizado, distopias futuristas sobre o ocaso da civilização estavam na moda e a cidade mais famosa do planeta sucumbia a uma onda de violência. Por isso, as solitárias cenas na maior metrópole do planeta marcaram uma geração (Foto: Reprodução)

A caracterização dos infectados, porém, deixa a desejar: parece um grupo de ex-beatniks que não pegam uma praia há décadas, prontos para conferir um show de “Os mutantes” décadas após a tropicália. Só falta carregarem brochuras de Jack Kerouak sob dos braços… (Foto: Reprodução)

Mesmo quando tiram os óculos que os protegem da luz solar, a make risível não inspira medo. Isso acaba concentrando a catarse do público na solidão do mocinho (Foto: Reprodução)

Bem mais precário tecnicamente, “Mortos que matam” se aproveita do terror psicológico para economizar uma grana em cenografia ou tomadas externas. Ainda assim, impressiona pela interpretação barroca de Pryce e a iluminação expressionista. A mera sugestão dos infetados e a reclusão do protagonista são os elementos que instigam o espectador a embarcar nessa fantasia pandêmica, na contramão da apresentação da cidade destruída, que aqui é somente sugerida.

Xô, infectado! O carão over de Vincent Pryce em “Mortos que matam” é perfeitinho para um meme do coronavírus! (Foto: Reprodução)

Curiosidade:  “Mortos que matam” destaca o isolamento social do personagem. Numa época pré-histórica, em comparação com os recursos de comunicação atuais, resta ao Dr. Robert Morgan apenas o rádio amador para tentar estabelecer contato com o mundo lá fora. Agradeça ao seu smartphone por não enlouquecer no confinamento atual; nos anos 1960 seria bem pior… (Foto: Reprodução)

“A dança da morte” (The Stand, de Mike Garris, Greengrass Productions, 1994):

Minissérie feita para a televisão, essa narrativa baseada no livro homônimo de Stephen King impregna com tintas sobrenaturais uma pandemia que destroi o planeta. Com um acidente numa base de pesquisa militar, uma mortal gripe de laboratório se espalha pelo mundo. A ordem social implode nos Estados Unidos. Os sobreviventes se reúnem em dois grupos: aqueles que, sob o comando de uma casta senhora religiosa negra, são atraídos para uma idílica comunidade além de um milharal (King não abre mão de um deles nas suas histórias, nem da sua transposição para o cine-pipoca); e aqueles que, sob o domínio de Randall Flagg – personificação da maldade -, se amontoam em Las Vegas, epicentro do pecado. Moralista? Óbvio!

Bem-vindo ao armageddon! O Times Square de “A dança da morte” vai para o espaço conforme a pandemia viral sai do controle (Foto: Reprodução)

A primeira parte, que mostra a doença se alastrando por diversas localidades e os personagens lidando com a civilização em colisão com a ruína, é superior à segunda, quando um roteiro maniqueísta estabelece no pós-apocalipse um Tratado de Tordesilhas entre o bem absoluto e mal supremo. Falta a cartela inteira de cinzas do Pantone nessa narrativa. Apesar de as sequências sobre a disseminação da doença serem assustadoras, justificando a conferida, a parte piegas não compensa: é ideal somente para pastores evangélicos que pretendem capitalizar o medo dos fieis em cima do corona.

“A dança da morte vai ganhar uma continuação que deve estrear após a pandemia do coronavírus, estrelada por um elenco que vai de Amber Heard a Whoopi Goldberg, de Alexander Skarsgaard a Greg Kinnear. Com a expansão do corona, os produtores devem estar acendendo charutos para comemorar o sucesso antecipado (Foto: Reprodução)

Uma música na cabeça e um violão: o êxodo da população metropolitana em “A dança da morte” se mostra ineficaz, quando a difusão da doença extrapola a proximidade física, devastando o mundo. Apenas os imunes sobrevivem. Neste novo mundo sem ordem, só resta tocar uma cançãozinha e acender aquele baseado! (Foto: Reprodução)

“Exército do extermínio” (The Crazies, de Breck Eisner, Overture Films e outros, 2010):

O longa original (1973) é de George Romero, que tinha dado um tempinho nos zumbis focando em outras epifanias pandêmicas. Motivado pela estética da violência que havia recém-dominado Hollywood, o diretor e produtor concebeu um filme inquietante no qual os contaminados, após sucumbirem a uma fortíssima febre, são tomados por impulsos sociopatas, atingindo quem aparecer pela frente sem a menor empatia. Vale tudo, do ancinho do jardim ao trezoitão, passando por atropelar a dona encrenca cara-metade. A tensão é tanta que o antigo roteiro foi tirado do baú para ganhar refilmagem quase quarenta anos depois, numa produção com mais acabamento que ainda contou, de lambuja, com o bom e velho George na produção executiva. No cinema, nada se cria, tudo se copia, inclusive quando se trata de retratar, sem treta, o fim do mundo.

Não adianta a mulher de César ser honesta, ela tem que aparecer honesta! O ditado cai como uma luva em “Exército do extermínio” (1973): espirrou, pouco importa se é apenas alergia de infância. No âmago de erradicar um vírus mortal, os responsáveis pela saúde pública passam o rodo em quem parece doente, real ou não! (Foto: Reprodução)

Como sempre, a crítica social presente na obra autor está ali, pronta para fazer a alegria dos fãs. Sacadas do gênero são atiradas a granel no colo do espectador, que pode se deliciar com leituras como o fato de os agentes federais que procuram conter a proliferação do vírus serem muito mais truculentos que os apáticos, mas perigosíssimos infectados. Sem remorso algum, que fique claro. Pior: com o álibi de estarem a serviço do sistema para suprimir a “gripinha”…

Na refilmagem de “The Crazies”, sequências escatológicas se intercalam com outras apenas sugeridas, num caleidoscópio de maldades praticadas por doentes assassinos que se multiplicam em progressão geométrica. É matar ou morrer, amor! (Foto: Reprodução)

“O enigma de outro mundo” (The Thing, de John Carpenter, 1982): 

Pura ironia! Esse clássico classe B do mestre do terror John Carpenter se passa no único continente não atingido pelo coronavírus: a Antártida! Um vírus alienígena contamina um a um os cientistas de uma estação de pesquisa plurinacional, com um detalhe: ele destroi o corpo do hospedeiro depois de reproduzir suas células, mimetizando a forma do infectado após a sua morte. No frigir dos ovos, são fenômenos sociais como o isolamento e a paranoia os verdadeiros inimigos dos sobreviventes, que precisam aprender a confiar uns nos outros para por o bicho para correr!

Próteses e efeitos especiais mecânicos (verossímeis para a época) – além de um carregamento de glucose de milho para simular sangue – se encarregam de criar o clima de horror em “A coisa”. Mas é a desconfiança crescente dentre os membros da expedição que dá o tom dessa produção concebida para a alegria de nerds (Foto: Reprodução)

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