No domingo (6/10), dia de eleições municipais para eleger prefeito e vereadores — precisamente às 19h41, enquanto rolavam as apurações Brasil adentro —, o espetáculo “És tu, Brasil?” iniciava uma maratona de quase 2h no Futuros – Arte e Tecnologia, no Flamengo, após um incidente com a Light; agência de distribuição de energia elétrica do Rio, que afetou alguns pontos da zona sul carioca. Nem as três quedas prévias de energia surtiram o mesmo efeito do blecaute sucedido pelos sons cantados e pisadas fortes, recursos da musicalidade e expressionismo empregados pelo elenco formado por Giovanna Nader, Igor Pedroso, Lucas Sampaio e Luiza Loroza.

Para preencher o espaço que é meio teatro de arena, meio passarela artsy, o 1COMUM Coletivo buscou contemplar a matriz étnica brasileira, oferecendo à cena quatro intérpretes que remontam à pluralidade do Brasil. A indumentária, que surfou no mix de looks tipo “Farm para usar em Mad Max” com elementos monarcas surrados sobre maiôs com aplicações tricotadas, também é destaque cênico ao traçar um paralelo com a moda como agente capitalista do esvaziamento de recursos em prol de tendências efêmeras e falsas necessidades.

Encenando uma biografia do Brasil sob um olhar ecológico, espetáculo do premiado 1COMUM Coletivo imagina como a ocupação da terra brasileira ao longo do tempo conecta eventos históricos aos efeitos da crise climática
Lendo a trajetória do Brasil sob a ótica ecológica, o espetáculo “És tu, Brasil?” vai à raiz do problema quando se fala de crise climática: o sistema capitalista. (Foto: João Julio Mello/ Divulgação)

O trabalho corporal, espetacular por sinal, mostra que o corpo fala e, nesse caso, também grita/trepida/exaspera para compor com as interpretações viscerais do quarteto. Giovanna Nader, que retorna aos palcos após sete anos distante, nem disfarça a euforia de botar de pé um projeto alinhadíssimo com seu discurso pessoal em relação ao caos climático que caminhamos e que é discutido com compromisso pela artista em suas redes sociais. O olhar expressivo, como duas piscinas azuis a boiar no rosto alvo, é outro condutor de vários momentos em que o público se divide entre o riso e o desespero… ou o famoso rindo de nervoso, sabe como?

Encenando uma biografia do Brasil sob um olhar ecológico, espetáculo do premiado 1COMUM Coletivo imagina como a ocupação da terra brasileira ao longo do tempo conecta eventos históricos aos efeitos da crise climática
“É um espetáculo sobre crise climática no Brasil, mas que usa deste escopo para revelar outras crises que engendram este país: crises políticas, sociais, subjetivas, morais e econômicas”, pontua Thiago Scarpat, dramaturgo do espetáculo. (Foto: João Julio Mello/ Divulgação)

Já Luiza Loroza é deleite puro. A atriz e cantora sabe como rotacionar as atenções para si sem dificuldades, a exemplo (e sem spoiler!), na cena do jantar, em que sua personagem decide parir mais uma prole num Brasil recém-adepto à lei do filho único, a agilidade vocal para equilibrar as noções de raiva, tristeza e alegria nos mantêm vidrados nela, mesmo com Lucas Sampaio provocando catarse com sua facilidade de alternar expressões e sotaques. Aliás, a cepa masculina garante uma linguagem nerudiana, densa e nua, plena de uma maturidade teatral deslocada da pouca idade de Lucas Sampaio e Igor Pedroso. Convergência de talentos? Temos!

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“Mudanças violentas no uso do solo e desmatamentos sistemáticos são projetos de desenvolvimento do Brasil, o único país com nome de árvore no mundo”, comenta Fernando Nicolau, também diretor e iluminador do espetáculo. (Foto: João Julio Mello/ Divulgação)

Bastaria essa mistura de personas para tornar “És tu, Brasil” imperdível. Afinal, não dava para esperar menos de uma peça que estreou em pleno 7 de setembro já anunciando que algumas das enormes e profundas feridas da condição humana seriam expostas. Porém, além da premissa que envolve os efeitos da crise climática no mundo e as preocupações com a estabilidade democrática brasileira, a sucessão de recortes temporais e ambientações forjadas em cima de um tapete escarlate dilapidado e lindo, junto a quatro peças em madeira entalhada com espelhos fixos na base maior, mais o alívio tragicômico das atuações, faz a mensagem ir além da boa ideia e vale cada segundo. Plus: o convite/release da peça, disponibilizado ao público na chegada ao teatro e alinhado à premissa consciente, virava um marca página e livros destacável. Chique no simples.

O espetáculo colhe da rusticidade das ações e da indiferença do homem a luz necessária para iluminar a realidade opaca da pouca perspectiva de futuro. Se o Brasil tem muitas faces e, por isso, não deveria limitar-se a ditames embranquecidos e pautados no dinheiro e poder, a peça com seu texto épico é parte essencial nesse processo de auto-reconhecimento na dúvida: És tu, Brasil? Vale a ida ao teatro para descobrir!

Encenando uma biografia do Brasil sob um olhar ecológico, espetáculo do premiado 1COMUM Coletivo imagina como a ocupação da terra brasileira ao longo do tempo conecta eventos históricos aos efeitos da crise climática
“Essa peça nasceu da vontade de comunicar a urgência do clima em uma outra linguagem, e eu acredito muito no poder do teatro pra promover uma conscientização mais profunda sobre a pauta.”, afirma Giovanna, idealizadora da peça ao lado de Fernando e Thiago. (Foto: João Julio Mello/ Divulgação)
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“És tu, Brasil?” convida público para mergulho literal nas raízes da relação homem e planeta. (Foto: João Julio Mello/ Divulgação)

Serviço:

“És tu, Brasil?”
Temporada: de 07 de setembro a 27 de outubro de 2024
Horário: Quinta-feira a domingo – 19h
Local: Futuros – Arte e Tecnologia
Endereço: Rua Dois de Dezembro, 63 – Flamengo – Rio de Janeiro
Ingressos: R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia-entrada/ meia-entrada solidária, doando 1 Kg de alimento não-perecível)
Duração: 120 minutos
Classificação Indicativa: 14 anos

*Por Andrey Costa

Foto destaque: João Julio Mello/ Divulgação

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