Em edição difícil de prever, com concorrentes equilibrados chancelados por vitórias alternadas em outras premiações, o Oscar 2023 promete resgatar o nível de emoção que andou se esvaindo não só durante o auge da pandemia, mas nos anos recentes que a antecederam. É pouco provável, por exemplo, que outra concorrente ao prêmio de ‘Melhor Atriz’, além da australiana Cate Blanchett (“Tár”) e da malaia Michelle Yeoh (“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”), levante a estatueta no próprio punho, mas não se sabe qual das duas. Assim como é difícil imaginar quem, dentre Colin Farrell (“Os Banshees de Insherin”), Austin Butler (“Elvis”) ou Brendan Fraser (“A Baleia”), vai levar para casa o Oscar de ‘Melhor Ator’. Disputando 11 categorias, “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é aposta maior para ‘Melhor Filme’, mas candidatos azarões e igualmente brilhantes, como “Entre Mulheres” e “Triângulo da Tristeza”, que levou a Palma de Ouro em Cannes, podem surpreender, como aconteceu com “Parasita” (2020). ‘Tár”, “Nada de novo no front” e “Os Banshees de Inisherin” são obras-primas, e “Top Gun: Maverick” e “Avatar: o caminho das águas” estratégicos: representam respostas afiadas da indústria cinematográfica ao esvaziamento do circuito de exibição pelo combo Covid19 + streaming, carregando nas costas a volta do público à sala escura. E tem Steven Spielberg, com “Os Fabelmans” na parada, produção que homenageia o próprio cinema, coisa que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood costuma levar em consideração. Dentre tantas incertezas, o contundente “Pinóquio”, longa-metragem de animação dirigido por Guillermo Del Toro e Mark Gustafson, é praticamente dado como vencedor, por unanimidade, remando na contramão de tantas probabilidades nas demais categorias.

Nem se questionam os fabulosos aspectos técnicos do desenho animado, que conta com a primazia do trabalho de animação de Gustafson, com oito produções no currículo antes de embarcar nessa tenaz aventura de Del Toro por uma ideia que levou anos para que conseguir tirar do papel, antes de finalmente aprovar orçamento com a Netflix. Além de redondíssima, bem costuradíssima e belíssima, a emocionante, mas triste narrativa de “Pinóquio” se encarrega de ir naturalmente, sem apelação, ao encontro do ZeitGesit do momento – a reação ao conservadorismo fundamentalista e antipluralista que anda ameaçando o livre-pensamento na política, na sociedade e no comportamento, cujos exemplos mais contumazes foram as recentes Eras Trump e Bolsonaro, nos EUA e no Brasil, e os ainda atuais governos da de extrema-direita da Polônia, Hungria, Turquia, Síria e outros, assim como a vitória da líder partido Fratelli D’Italia, a radical Giorgia Meloni, em outubro,como primeira-ministra da Itália.

Ao se distanciar do esplêndido clássico homônimo da Disney (1940), “Pinóquio” se mostra tão necessário quanto a adaptação mais famosa da obra de Carlo Collodi (1883) nas telas, provando que uma narrativa tão excepcional quanto a dirigida por Walt Disney pode se deparar com o improvável: encontrar, tempos adiante, outra que seja tão necessária quanto a sua. O resultado alcançado por Guillermo Del Toro atesta que, se por um lado persiste a tese de que filmes definitivos não carecem de refilmagem, releituras de materiais originais que já renderam clássicos podem gestar novas pérolas, caso se distanciem do “primo” famoso.
Confira abaixo o trailer oficial de “Pinóquio” (Divulgação):
Ao se afastar da versão da Disney para abraçar o original literário, Guillermo Del Toro e Mark Gustafson abraçam bem mais que a discussão acerca do que seja humanidade, espinha dorsal da história que narra o desejo de se tornar humano de um boneco de madeira que ganha vida através de magia. Impregnando o seu “Pinóquio” com novas significações além daquelas contidas na obra literária, e longe de (felizmente) absorver as referências contidas no Pinóquio da Disney, o diretor prova que podem existir novas abordagens viscerais de clássicos que já foram filmados, sobretudo se influenciadas pelo espírito do momento, desde que não se deixem levadas pelos modismos rasteiros de uma pauta de agenda determinada por likes das redes sociais.

Fascinado pelos aspectos mais sombrios da alma humana, assim como Tim Burton, Del Toro consegue temperar todas as suas realizações terroríficas com poesia capaz de enternecer Edgar Allan Poe. Poucos cineastas conseguem como ele transformar o bizarro, grotesco e insólito, passível de despertar repulsa, em ternura. É assim desde quando sua carreira realmente despontou, com obras como “A espinha do diabo” (2001), “Hellboy” (2004) e “O labirinto do fauno” (2006), avançando por produções mais oníricas, tipo “A forma d’água” (2017), que lhe rendeu o Oscar de ‘Melhor Filme’, ou outras mais assumidamente macabras, como os recentes “A colina escarlate” (2015) e “O beco do Pesadelo” (2021).

Ambientando a história de Carlo Collodi na Itália fascista de Benito Mussolini, vertido inclusive em personagem, e introduzindo tintas antifascistas, Guillermo Del Toro e Mark Gustafson se encarregam de produzir faísca sem caírem no território fácil da lacração.

Um dos longas-metragens mais tristes dos últimos tempos, “Pinóquio” é mais que lampejo de crítica social afinadíssima com o status quo atual – o populismo que, com o poderoso auxílio das fake news elaboradas com requinte nas mídias redes, produz, com a providencial falta de estímulo governamental à educação, uma massa iletrada que, com pavor da diversidade, se converte m um numeroso curral pronto para respaldar a ameaça do novo totalitarismo, acreditando que está defendendo valores tradicionais de família, religião e respeito. Nesse ponto, e por suas múltiplas e soberbas qualidades, “Pinóquio” merece arrebatar o Oscar.
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