Primeiro foram as tops models na virada dos anos noventa. Com o mole que Hollywood deu a partir  dos setenta, querendo estrelas “gente como a gente” em produções que retratavam o cotidiano, o cinema perdeu o glam e a moda assumiu a dianteira como fábrica de sonhos. Em seguida, ela democratizou geral, grudou no pop e o streetstyle começou a dar as cartas diluindo a verticalização, de cima para baixo, da difusão de tendências. Se montar ficou muito mais interessante para todo mundo e, do dia para a noite, o mundo passou a ser “fashion”, com a turma incrementando na mistureba como bem entendesse.

Da esquerda para direita, Cindy Crawford, Tatjana Patitz, Helena Christensen, Linda Evangelista, Claudia Schiffer, Naomi Campbell, Carla Bruni e Stephanie Seymour em imagem histórica de Peter Lindbergh. Time inicial de supermodelos rendeu frutos e mudou a percepção que o grande público passou a ter da moda(Foto: Reprodução)

Depois, veio a moda das semanas de moda no Brasil, ancorada pelo boom das escolas de fashion design por aqui, a reboque do que já acontecia em todo o planeta. Se bobear, abriu facul até em Itapecerica da Serra.

Para sacramentar o novo modismo, veio a globalização de gente afiadíssima com o multiculturalismo, como Galliano e McQueen. Uma turma nova que ressuscitou grifes dos anos dourados e fez da passarela um espetáculo num patamar sequer imaginado pela rapaziada que já causava nos espalhafatosos oitenta, como Karl, Gaultier, Montana, Mugler e Aläia.

Tudo isso, amplificado por Linda, Naomi, Tatjana, Christy, Nadia, Amber, Helena, Laeticia, Claudia, Kristen, Kate e o diabo a quatro, tornou mesmo irresistível o panorama fashionista.

Senso de espetáculo: John Galliano dá sua tradicional pinta no término da apresentação da sua primavera-verão 97, mezzo vitoriana mezzo navajo, um dos seus lendários desfiles da Dior, durante a Semana de Moda de Paris (Foto: Reprodução)

Mulher-pássaro: a top Nadja Auerman incorpora a sofisticação selvagem no look bafo de Thierry Mugler, na Semana de Alta Costura de Paris, em 1997 (Foto: Reprodução)

Clones, quadriculados e escadas rolantes: um das últimas coleções desenhadas por Marc Jacobs para a Vuitton ganhou as manchetes do mundo inteiro por conta não só dos looks, mas do cenário de cair o queixo. Raras vezes um espetáculo foi tão… Espetacular! (Foto: Reprodução)

A Sétima Arte ainda levaria pelo menos meia década para reinventar um star system capaz de competir de igual para igual pelas capas de revistas, com cover girls do naipe de Nicole, Cate, Gwyneth, Uma, Zeta-Jones, Charlize, Cameron e Scarlett, todas ex-modelos. Foi nesse ambiente espetacular em parâmetros “guydebordianos” que a São Paulo Fashion Week nasceu.

Figurinha fácil nas capas das publicações, a ex-modelo australiana Cate Blanchett – hoje figura de proa em Hollywood – personifica a reação do cinema na disputa com a moda para capitalizar o público. Na capa da edição de dezembro 2015 da Vogue Austrália, a estrela – que a Condé Nast ama de carteirinha – é a prova de que a guerra das capas tem sido vencida ultimamente pelo star system, e não pelas supertops (Foto: Reprodução)

Primeira super modelo hiper tatuada da cena fashion brazuca, Marina Dias impressionou com suas  lentes de contato diabolicamente brancas, entrando para os anais da moda nacional no mesmo desfile que consagrou definitivamente Lino Villaventura como artífice de sonhos. Nessa época – meados dos anos 1990 – a SPFW ainda era o Morumbi Fashion, mas o espetáculo já imperava numa era em que a moda estava na moda (Foto: Reprodução)

Nesta última edição da SPFW, Lino Villaventura mais uma vez mostrou ao público, através do seu elaboradíssimo handmade, o porquê de ser considerado peça de resistência num evento que precisa cada vez mais equilibrar os lançamentos comerciais com a lufada autoral (Foto: Marcelo Soubhia / FOTOSITE / Divulgação)

Parque de diversões: há seis edições, a SPFW celebrava a parceria com o fast fashion. O desfile com lançamento da coleção “see now buy now” da Versace para Riachuelo – com direito a cenário impressionante, presença de uma simpaticíssima Donnatella e um festão de arromba – revelou aos fashionistas que o casamento de uma plataforma de lançamentos com a moda comercial poderia render ótimos frutos. Parecia promissor. Mas, a crise econômica que mergulhou o Brasil no buraco tratou, pelo menos por enquanto, de jogar um jato d’água gelado nos recém-pombinhos. A solução agora é torcer para o casamento ser retomado (Foto: FOTOSITE / Divulgação)

Por que então, afinal, ela anda tão chocha, tanto quanto uma baladinha jeca qualquer entoada por Paula Fernandes? Esse prenúncio já podia ser mais claramente percebido na temporada passada, e nessa edição 44 do evento, faltou mesmo viagra.

Bom, inicialmente os eventos esportivos internacionais arremataram o interesse dos investidores, roubaram verba da moda. Soma-se a isso a crise política, econômica e moral que, como um Minotauro, leva ânimos a nocaute num país falido, conduz grifes à bancarrota e torna tudo muito mais suado.

Uma fila de tops, boas roupas e um ótimo show num cenário lacre! Essa fórmula estabeleceu a SPFW como usina de sonhos no imaginário geral. Agora, com os investimentos minguados, a função de levar o grande público ao delírio pode estar momentaneamente comprometida (Foto: FOTOSITE / Divulgação)

Com muito menos dinheiro, os desfiles ficaram mais pobres, os cenários mirabolantes minguaram, os mimos vazaram, os lounges de patrocinadores viraram raridade. E, com o empobrecimento de tudo, as estrelas também sumiram. Pior, já não se renovam como antes, até porque há quem prefira ser blogueira que modelo de responsa. Nessa temporada, os holofotes recaíram sobre o menino de cabelo descolorido que veio do Vidigal e já desfilou para Balmain. O tal Pietro. Cá entre nós, todos já vimos esse roteiro um trilhão de vezes. Muda o elenco, a narrativa é a mesma.

Bola da vez: Pietro Baltazar dá o ar de sua graça no desfile de João Pimenta que apresentou o céu e o inferno aos fashionistas nesta última edição da SPFW (Foto: FOTOSITE / Divulgação)

Toda estação surgem promessas de novos expoentes. Thairines ruivas, Amandas com sobrenome de onomatopeia, Valeskas que ressignificam antigas alcunhas de traveca bafão. E tem as trans, de Andrey Pejic a Lea T., de Goan a Valentina Sampaio. Ainda não surgiu top eunuco. Okay.

Há exatas duas edições, em outubro de 2016, Ronaldo Fraga foi umas das grandes sensações da SPFW com desfile que reforçou a liberdade de identidade de gênero em apresentação totalmente realizada com modelos trans. Não deu outra. Ao lado da estreia da LAB, grife do rapper Emidida, o mineiro foi destaque na imprensa de todo o Brasil. O belo cenário, o casting, a locação externa e a originalidade do assunto na época são exemplo contumaz do quanto a moda pode se beneficiar do espetáculo (Foto: Marcelo Soubhia / FOTOSITE / Divulgação)

Dessa vez, Ronaldo Fraga repetiu o show, em desfile que celebrou a democracia de corpos na praiada moda. Ao lado de Lino Villaventura, Gloria Coelho, Patricia Viera, LennyNiemeyer, Osklen e Reinaldo Lourenço – que não participa há duas edições -, o mineiro é um sopro de moda autoral num evento que, para sobreviver aos novos tempos, precisa se render à moda comercial e que, no passado,já contou com criadores do naipe de André Lima, Fause Haten, Marcelo Sommer, Dudu Bertholini, Walter Rodrigues, Renato Loureiro, Wilson Ranieri e Mario Queiroz (Foto: Zé Takahashi / FOTOSITE / Divulgação)

Um dos modelos trans da moda, Goan Fragoso desfile para À La Garçonne a abertura da edição de verão 18 da SPFWN44. O belo desfile virou polêmica: no dia seguinte, os estilistas Fábio Souza e Alexandre Herchcovitch declararam que o fashion show foi independente e anunciaram sua saída do line up do evento que ajudou a consagrar o segundo como um dos maiores fashion Designers do Brasil (Foto: Zé Takahshi / Divulgação)

Mas, quem foi a última mesmo para valer surgindo poderosíssima com seu carão, fazendo o coração da plateia pular pela boca? Daiane Conterato com sua magreza incrível e seu nariz capaz de enciumar Rossy de Palma, deslizando como uma entidade divina pronta para engolir a fama de Mariana Weickert de melhor pisão, quando essa já migrava para a TV? Isso foi em 2006.

Compasso lânguido: Daiane Conterato empresta sua estampa exótica à Lolita, grife de Lolita Hannud que despontou na mais recente safra de apostas da SPFW (Foto: FOTOSITE / Divulgação)

Tem também uma certa repetição de elenco entre gente que faz a SPFW acontecer. Nada contra ação entre amigos. Amigo não dá trabalho para inimigo; é ótimo atuar com quem se conhece de longa data. A panela flui. O caldo cozinha. Mas, vejamos: nessa SPFWN44 Tivemos 32 desfiles, mais cinco marcas no Top 5 do Sebrae, mais as performances da Jahnkoy e a do encerramento. Basta pegar as fichas técnicas e fazer o cruzamento para conferir que na moda da SPFW tudo  muda para continuar o mesmo. Nada contra, au contraire, mas a moda precisa ser plural para se oxigenar. Excesso de repetição de edição para edição e, mais ainda numa mesma temporada, leva a um espectro nada variado de visões de moda, ainda que os profissonais trabalhem para grifes diferentes com DNAs diversos. E a repetição excessiva que leva à mesmice pode sublimar o potencial espetacular do evento.

Showbizz que vem de fora: para turbinar seu mix, a SPFW mais uma vez trouxe talento de fora. Apresentou a coleção multiétnica da russa Maria Kazakova, que anda encantando os novaiorquinos. Foi atração da melhor qualidade num evento brasileiro que prima pelo conteúdo e que, ao contrário dos seus pares no Hemisfério Norte, tem o cuidado de oferecer ao público edições temáticas (Foto: Marcelo Soubhia / FOTOSITE / Divulgação)

Pois é. Por todas essas e outras, pode estar se apagando o espetáculo sobre o qual a SPFW se edificou. Se não foi para o espaço, perdeu fôlego o showbiz – invólucro sobre o qual o negócio se consagrou dentro daqueles parâmetros que os teóricos da comunicação chamam de  Sociedade do Espetáculo. Obviamente, não se questiona a competência do evento, suas boas intenções, nem o inegável esforço do talentoso Paulo Borges em remar contra a maré de um Brasil ingrato. Mas, não é só isso. Existe algo mais grave: a migração do espetáculo da passarela para a plateia, via tecnologia da informação.

Um dos principais fenômenos da liberdade na construção da identidade, forjada no limiar do Novo Regime com a ascensão da Burguesia Industrial e a consagração da Sociedade de Consumo, a moda desfrutou na virada do novo milênio de um status como nenhuma outra expressão. Reconhecimento também cunhado às custas da Pós-Modernidade, das relações líquidas, da supremacia da marca. Chega a ser curioso que seu excesso de exposição, através da incansável fogueira de vaidades na Era da Comunicação, esteja aos poucos lhe exaurindo como um vampiro de folhetim.

O excesso de posts e selfies não só banalizou a moda, pulverizou-a em níveis nababescos. Quem a consome ou divulga em eventos como a SPFW parece enfastiado como um Visconde de Valmont sempre à busca de intermináveis emoções baratas. Assim como o nobre libertino, o excesso ininterrupto de flertes com a moda não preenche; só cansa.

A modelo Thana Khunen irrompe a passarela da UMA na SPFW, na última segunda (28/8), enquanto o público assiste ao show através das lentes dos seus celulares. A preocupação da audiência? Registrar a melhor imagem para disparar imediatamente nas redes sociais, lucrando com a sua própria autoexposição e fazendo do evento apenas o trampolim para o sucesso pessoal… (Foto: Ze Takahashi / FOTOSITE / Divulgação)

Pior, com o desaparecimento do espetáculo na passarela e a pasteurização generalizada, o evento padece da sensação de mesmice que levou Anna Karenina a procurar experiências em relações extra-conjugais e Emma Bovary a permitir que o coração pulasse pela boca, mesmo que isso lhe causasse a desgraça. Ao citar dois autores cujas obras refletem os anseios afinados  com a Modernidade – Tolstói e Flaubert – , e outro que execrava a antiga aristocracia – Laclos –, é possível conclui que, enquanto expressão fundamental da Modernidade, a moda pode ser também uma cobra que devora o próprio rabo: ao tirar proveito das novas tecnologias para se difundir ainda mais, através das benesses de inúmeros devices e aplicativos que amplificam seu poder de bala, até colaborando na proliferação dos influencers e redefinindo a forma da imprensa atuar, a moda se tornou refém desses dispositivos.

Carrossel da moda: termo nunca fez tanto sentido como durante a bombástica apresentação da Vuitton em 2011, Paris. Está confirmado: para disputar a atenção do público com os smartphones, é preciso impactar na superprodução (Foto: Reprodução)

Os desfiles perderam a supremacia no seu habitat. Com a democracia fashion turbinada através das milhões de vozes que passaram a encontrar eco nos Instagrams da vida, conferir aquilo que é lançado na passarela deixou de ser o objetivo primordial da maioria das pessoas que comparecem à SPFW. Munidas de smartphones com aplicativos de última geração, o espetáculo agora está menos na catwalk e mais no protagonismo do público. Desfiles, backstages, áreas de convivência, brindes e gente famosa não é mais o teatro principal, mas mera moldura para que o público que frequenta o evento exerça seu próprio brilho.

Atualmente, castings, coleções e fashion shows são apenas pano de fundo para selfies e stories em narrativas egoicas, nas quais todo mundo tem mais a dizer que o estilista. O público hoje é mais importante que a laçada que está na moda, o pantone da temporada ou a top model de destaque. Está rompida a submissão da audiência ao espetáculo da passarela e foi para o espaço a interdependência entre quem organiza a SPFW, seu elenco de grifes e a plateia. E agora, José?

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