O diretor, produtor e roteirista italiano Cristiano Bortone circulou muito à vontade e com visível alegria no Festival do Rio, onde apresentou seu último longa-metragem “Meu lugar é aqui” (Il mio posto è qui, Itália/Alemanha, 2024) no âmbito da mostra “Presença Italiana”, apoiada pelo Consulado Geral da Itália e pelo Istituto Italiano di Cultura do Rio de Janeiro.

Afinal, o Brasil tem sido um destino muito significativo para ele desde o ano 2000. Foi onde ele se apaixonou perdidamente – não só pelo seu povo e cultura -, mas onde também teve uma das suas obras reconhecidas, em 2007, quando exibiu o pujante “Vermelho como o céu” (Rosso come il cielo, 2006), sobre o drama verídico de Mirco Mercacci, adolescente cego impedido de frequentar a escola – segundo a lei italiana da época – e que se tornou um dos mais importantes editores de som do cinema do seu país. O filme saiu premiado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Dezessete anos depois, nesta edição do Festival do Rio, Bortone nos brinda com outro mergulho em vidas de personagens rejeitados, mas que não se vergam e lutam por suas identidades.

ÁS: Uma das qualidades do seu filme “Meu lugar é aqui” é a habilidade com que ele expõe a opressão e a hipocrisia de uma comunidade rural conservadora sem perder a ternura e a voltagem emocional que o torna tão empático com o público.
CRISTIANO BORTONE (CB): Hoje, vendo retrospectivamente os meus filmes ao longo de 20 anos, noto que sempre coloquei a humanidade dos personagens em primeiro lugar por meio de histórias que estabeleçam um canal com o público em que a emoção conduz a uma reflexão sobre a condição humana e a vida social. Sempre me afastei de experimentalismos visuais ou de retóricas narrativas rebuscadas se estes prejudicassem a primazia da história, principalmente diante de um mundo tão complexo e confuso – abatido por ódios, preconceitos, guerras, decadência urbana, aquecimento global… – e com tantas histórias urgentes para contar. Imagine! Atingimos 45° graus neste verão na Itália!

ÁS: E contar uma boa história com simplicidade não é fácil. Concorda?
CR: Não, não é. É mais fácil fazer exercícios de estilo, os quais para mim são desnecessários quando você quer narrar histórias e personagens potentes e humanos. Todavia, existe um forte lobby de estilistas que ainda domina o cinema, comissões de filmes e festivais de cinema europeus.

ÁS: Como foi trabalhar com a sua mulher e codiretora?
CR: Eu não tinha me dado conta do talento literário da Daniela. Há dois anos ela me deixou ler o seu romance que acabou publicado por uma grande editora italiana [Sperling & Kupfer, de Milão] Ela sugeriu então que eu o adaptasse para o cinema e eu aceitei com uma condição: que ela o codirigisse comigo. Eu achei que o olhar e a sensibilidade dela seriam essenciais para o êxito do filme e sem os quais eu não teria conseguido traduzir sozinho todas as nuances do livro.

ÁS: Como a sua equipe encarou essa dupla de diretores composta por marido e mulher?
CR: No início, acharam uma loucura. Alguns pensaram: “O filme pode até ficar bom, mas eles vão brigar e se separar durante a filmagem!” [risos]. Mas aconteceu exatamente o contrário. Acho importante um casal ter um projeto em comum fora da vida privada para solidificar ainda mais a relação.
ÁS: O filme narra o encontro de dois personagens outsiders, desviados da norma de um contexto social profundamente patriarcal e preconceituoso, como o cerimonialista homossexual da paróquia, tolerado pela comunidade e – mesmo assim – alvo de chacotas e humilhações. Os pequenos e subterrâneos grupos de gays mais cultos, reunidos em discretas casas nos arrabaldes dos vilarejos, tal como descrito no filme, existiam nessa época?
CB: Absolutamente. A Daniela fez uma cuidadosa pesquisa baseada em documentos e testemunhos. Parece inacreditável que essa realidade nunca tenha sido contada antes no cinema. E é na convivência nessa sociedade clandestina de gays e lésbicas que a personagem Marta começa a vislumbrar a possibilidade de uma vida muito mais livre e plena para si, com profissão e direitos de cidadã. Nessa época, a máquina de escrever era uma das poucas ferramentas para a entrada das mulheres no mercado de trabalho moderno e para que pudessem sonhar com a sua emancipação. É o mesmo sonho de libertação da personagem de Holly Hunter no filme de Jane Campion [“O piano”, 1993]. Meus filmes falam de personagens oprimidos que almejam e têm o direito de expressar o melhor que carregam dentro de si.

ÁS: O filme também aborda de forma adjacente a questão da introdução do voto feminino na Itália em 1945.
CB: Sim, essa questão histórica tornou-se extremamente relevante e com estrondoso sucesso depois do filme “Ainda temos o amanhã”* de Paola Cortellesi. O curioso é que os executivos da indústria do cinema na Itália diziam que esse tema não interessaria a ninguém. Estavam todos redondamente errados [risos]. Eles também diziam o mesmo dos filmes de terror, que era um gênero envelhecido! [*Já exibido em salas no Brasil, neste ano, e disponível no streaming]

ÁS: Por que esses executivos da indústria audiovisual dão tantos palpites errados?
CB: Porque no cinema e nas artes, em geral, não há regras. É como nas paixões amorosas. Ninguém sabe direito o que vai agradar ou fazer sucesso. A verdade é que os produtores são pessoas traumatizadas pelos fracassos que sofreram o que explica o conservadorismo da maior parte deles. Por isso se apegam a cânones ou a modismos. São poucos os visionários nesse ramo.
ÁS: O auge do cinema italiano e o seu sucesso artístico e comercial nas décadas de 1950 a 1970 inibem e pesam sobre as novas gerações de criadores?
CB: Eu, particularmente, sempre me considerei um rebelde do cinema italiano. O mundo está cada vez mais complexo e problemático, por isso vejo com muita reserva essas categorias históricas e “escolas” cinematográficas para serem aplicadas ao audiovisual de hoje. Para mim, a coisa mais importante – mais do que o cinema ou a sua história – é a vida, são as pessoas e seus problemas. São as histórias do mundo que me interessam como também interessaram àqueles homens que desenharam seus temores e desejos nas cavernas há milênios. Assim eles enfrentaram o medo do futuro, como nós também precisamos enfrentá-lo e com a ajuda do cinema.

ÁS: Dentro dessa perspectiva que filmes e criadores fascinam você?
CB: Chaplin, John Cassavetes, o cinema independente americano, filmes como “Transamérica”*, “Pequena Miss Sunshine”**. [*Direção de Duncan Tucker, com Feliciy Huffman, 2005] [**Direção de Valerie Faris e Jonathan Dayton, com Alan Arkin e Toni Collette, 2006]
ÁS: Como você vê a introdução de novas tecnologias audiovisuais e a profusão de plataformas de streaming, de telas e telinhas no ecossistema audiovisual?
CB: Como inevitáveis. Fui um dos primeiros diretores a adotar a tecnologia Avid* quando todo mundo – sobretudo os puristas da película – me dizia que essa ferramenta era um lixo e ia destruir o cinema. Cada inovação sempre traz desafios incômodos, principalmente para as pessoas mais reativas. Na verdade, toda repercussão de progressos tecnológicos nas mídias audiovisuais dependerá da política daqueles que as controlam. O cinema tal como o conhecemos hoje pode até morrer, mas não a narrativa e a pulsão de contar histórias. [*Programa computacional de edição audiovisual não linear criado pela Avid Technology no final dos anos 1980]
ÁS: E se as salas de cinema estiverem ameaçadas de extinção?
CB: Eu ficaria triste, pois foi onde fiz a minha formação cinematográfica. E também todos nós porque perderíamos essa formidável experiência psicanalítica, catártica e coletiva, que é a de ficar imerso numa sala escura vendo desfilar os nossos mais profundos sonhos e desejos.
Assista abaixo ao trailer oficial de “Meu lugar é aqui”, exibido no Festival do Rio (Divulgação):
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