Poderia ser sucesso, só que não. Nesta terceira narrativa da Netflix de tirar de Hollywood a hegemonia da série de zumbi, a brasileira “Reality Z” é tão preguiçosa quanto Bento Carneiro, malemolente vampiro do sertão nordestino criado por Chico Anysio. A diferença entre a nova produção de terror e o antigo quadro cômico se dá justamente na consistência do menu: enquanto o miserável sanguessuga criado pelo humorista era prato cheio para a crítica social de um Brasil desigual – aposta na absurda tragédia que seria um morto-vivo caminhar por um dos mais injustos países para se viver –, os dez capítulos do seriado não passam de canja rala, com muito mais caldo que galinha. No Brasil de Bolsonaro e no violento Rio tomado por milícias, havia ingredientes locais suficientes para tornar a visão brasileira do apocalipse zumbi uma fina mas indigesta iguaria, na mesma proporção em que é muito mais assustador se esquivar da morte e vida severina que ter a jugular perfurada por caninos no cangaço. Faltou tempero, fruto de um chef de bufê de comida a quilo, mais preocupado em descascar cebolas que oferecer um manjar dos deuses.

Bacurinhas em chamas: as tomadas aéreas que revelam a Cidade-Maravilha destruída por um apocalipse zumbi não são suficientes para causar a devida catarse. O Cristo Redentor que despenca, por conta de um abalo sísmico, numa breve cena do filme-pipoca catástrofe “2012”, é muito mais impactante (Foto: Divulgação)
Lançada no meio da última semana com alarde, “Reality Z” é a segunda atração mais assistida na plataforma de streaming, segundo o canal, nesses dias mais recentes de pandemia. E também o alvo de uma legião de haters, espectadores decepcionados que andam navegando nas mídias sociais com a ferocidade dos mortos-vivos via comentários desabonadores sobre essa marota produção, disparando sua verborrágica saliva no mesmo volume dos toneis de glucose de milho usados para compor a enxurrada de cenas de sangue dessas produções apocalípticas.

Em geral, a caracterização dos mortos-vivos de “Reality Z” é decente, apesar das lentes brancas que artificializam a aparência e da falta de cuidado com o conjunto de figurantes ao fundo. Para piorar, o Brasil está anos-luz na retaguarda desse tipo de produção. Um exemplo: a ausência de um coreógrafo de zumbis experiente no set. As movimentações irregulares vão do bom ao péssimo, por falta de direção do quesito. Só faltam dançar “Thriller” (Foto: Divulgação)

A representação dos zumbis ganhou seu contorno definitivo após o 11 de Setembro, com “Madrugada dos mortos” (2004), responsável por catapultar o gênero ao cinemão mainstream. Virou padrão desde então a aparência menos fake, mais nauseabunda e por isso crível, com efeitos de putrefação de corpos. Em “Reality Z”, o corolário é levado ao pé da letra apenas até a página dois: a economia de próteses e outros recursos de maquiagem que fogem do trivial é visível, ainda que o resultado final funcione. Ainda assim, longe do nível de excelência de produções como “Guerra Mundial Z” ou “The Walking Dead“. Não é orçamento, é know how. Faltou uma expertise apropriada nesse campo: alguns figurantes parecem criaturas sobrenaturais, outros são clones do rock star Marilyn Manson (Foto: Divulgação)
Não é trash, é ruim. A começar pelo roteiro pífio de Claudio Torres e Rodrigo Monte, que também assinam a direção dessa realização que traz o selo de uma das mais poderosas produtoras de audiovisual brasileiras, a carioca Conspiração Filmes. A dupla é responsável pela ótima “Magnífica 70” e o primeiro, filho de Fernanda Montenegro, traz na bagagem boas incursões ao cinema, como “Redentor” (2004) e a comédia fantástica “O homem do futuro” (2011). Agora, a receita desandou. O bolo solou.

Enquanto atriz, Sabrina Sato é ótima apresentadora: suas performance em “Reality Z” é tão constrangedora quanto seria Iris Apfel ser pega com a boca na botija num strip-tease. Salvam-se apenas as cenas em que a japa performa no palco do reality show ficcional, fazendo o papel dela mesma. Aí vai. Mas, quando é transformada em zumbi, o que seria trágico vira cômico. A contragosto… (Foto: Divulgação)

Público mau como um pica-pau: os espectadores não pouparam críticas à incursão de Sabrina Sato ao mundinho da interpretação (Foto: Reprodução)
Na tentativa de transpor para a realidade carioca os paradigmas que definiram o subgênero a partir do clássico “A noite dos mortos-vivos” (1968), de George Romero, o angu saiu do ponto. O quitute, que tinha tudo para não solar na panela, requentou. Pretendeu se valer de muito pouco para dobrar o estômago do público: a curiosidade despertada por um zombie movie made in Brasil. Tratada com burocracia e incapaz de sustentar na audiência o apetite voraz que os desmortos canibais demonstram por entranhas humanas, essa aposta da Netflix se perde pela falta da compreensão daquilo o antigo chefão da Fox, Daryl F. Zannuck, realmente queria dizer quando afirmava que “ninguém nunca perdeu dinheiro por subestimar o público”. Falta mojo neste cardápio, e nem o nojo é devidamente gratinado como deveria.

O que era para ser trash virou kitsch! As subcelebridades que protagonizam parte de “Reality Z”, no fictício programa de televisão “Olimpo” – oásis para os sobreviventes do apocalipse zumbi carioca – , envergam figurinos de deuses gregos dignos de uma produção épica da Cinecittà dos anos 1950. Maciste amaria! (Foto: Divulgação)
Até a metade, a premissa da série – a casa de um reality show tipo BBB usada como refúgio no meio de um cataclisma zumbi – segue “Dead Set“, original britânico lançado pelo criador de “Black Mirror“, Charlie Broker. Torres andou dando o bisou em entrevistas anteriores à estreia: “Depois do meio, acrescentei, fui mais autoral”, deu a entender. Balela.

É preto no branco, e olhe lá! No papel de um diretor de televisão egômano, Guilherme Weber dá vida ao clássico vilão tão desprezível quanto sórdido das narrativas celebrizadas pelo cinema-catástrofe. O resultado é tão batido quanto o Doutor Smith de “Perdidos no Espaço”.Perigo, perigo! (Foto: Divulgação)
A crítica social, que poderia explorar a desigualdade de um país tão difícil de crer quanto um surto de defuntos, é tão superficial quanto um cravo que nem formou ainda o carnegão na pele. Ficou epidérmica a possibilidade de tipos a se explorar nessa versão brasileira – os favelados, milicianos, a negra gordinha macumbeira, a perua da Barra, o PM cheirador de padê, o garotão da Zona Sul, a senhorinha que gastou a vida trabalhando num hospital público, a travesti poc de periferia e até o deputado corrupto da Alerj. Pastiche e desperdício? Pior: suas tramas se encerram abruptamente, antes que seus arcos possam se desenvolver adequadamente para criar empatia. No entra e sai de personagens desconectados, narrativas que poderiam causar tensão são abortadas, como se fosse ejaculações precoces. Pulsão zero. Dos clássicos como triângulos amorosos e conflitos de classe até um moderninho trisal, todas são encerradas em prematuras mordidas, prova de que a equipe de criação estava ali para mordiscar os cachês, sem desejo algum de abocanhar algo novo. Pena.

Em meio a um elenco caricato, obrigado a dar vida a papeis rasteiros que seguem ditames maniqueístas, alguns poucos atores conseguem transpor as barreiras impostas. Apesar do roteiro ralo, suas atuações se mostram valiosas, ainda que seus desfechos sejam quase sempre previsíveis. Da esquerda para a direita, sobressaem os protagonistas da segunda parte da minissérie: Pierre Baitelli (o cabo da PM, genial!), Emilio de Mello (o político), Carla Ribas (sensacional!), Luellem de Castro (a favelada ativista), Julia Ianina (a assessora) e Ravel Andrade (o garotão indie) (Foto: Divulgação)
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