Os tempos não estão brincadeira nem para o vampiro Drácula que, longe do glamour de outrora, sobrevive em um cafofo subterrâneo à custa das presas capturadas pelo seu torturado servo Renfield (Nicholas Hoult), outrora ambicioso advogado que, em crise de consciência e cansado de ser humilhado por décadas nesta relação tóxica, trapaceia na hora de alimentar o patrão, preferindo escolher como almoço, ao invés de típicas moças virginais, o sangue ruim dos algozes de vítimas de relacionamentos abusivos que frequentam um grupo de codependentes emocionais, mantido por uma paróquia local. Esse é o mote da sangrenta comédia de humor negro “Reinfield – dando o sangue pelo chefe” (Renfield, 2023), dirigida por Chris McKay, que soube aproveitaro divertido roteiro assinado por Ryan Ridley a partir de argumento criado pelo badalado Robert Kirkman (“The Walking Dead”) e que traz um inspirado Nicholas Cage na pele do sanguessuga maior da literatura (e do cinema) de horror, em continuidade ao filme que inaugurou o ciclo de produções de monstros da Universal Pictures – o “Drácula” de 1931 interpretado pelo astro húngaro Béla Lugosi sob a batuta de Tod Browning.

Depois de derrapar na tentativa sem sal de estabelecer um universo compartilhado de filmes de monstros nos moldes da Marvel, na década passada, a Universal acerta no tempero, chutando a bola no gol desta descompromissada, mas eficiente, comédia que transporta para os tempos atuais aquele Drácula arquetípico de cabelo com gomalina para trás, capa & casaca, olhar hipnótico herdado de um cinema mudo então recente e poses de aparente fidalguia que disfarçam sua monstruosidade (real e alegórica), com algumas pequenas atualizações que se encarregam de tornar assustador o vampiro aqui tratado como criatura patética, como os dentes.
Confira abaixo o trailer oficial legendado de “Renfield – dando o sangue pelo chefe” (Divulgação):
A começar pelo início da narrativa, que saborosamente recria algumas cenas em preto e branco do “Drácula” original, com Cage e Hoult substituindo Lugosi e Dwight Frye (que viveu Renfield no clássico), o longa-metragem é uma pérola no timing, nas gags e nos diálogos de duplo sentido que jogam no ventilador a ideia do quanto uma relação pessoal, de trabalho ou não, pode ser vampiresca (Hello, Miranda Pristley!). O público sai do cinema satisfeito, como se houvesse sido bem-servido num rega-bofe de boa gastronomia, duplamente de bem com a vida: por ter feito a catarse do cotidiano assistindo a uma boa comédia e por conseguir se enxergar no tragicômico Renfield através de uma série de situações nas quais se mastiga o abuso físico e psicológico travestido de boas intenções.


Nesta realização, a ameaça de um vampiro no significado literal não é nada quando comparada ao sentido figurado. Melhor esquecer crucifixos, água benta e dentes de alho. A solução pode estar na libertação que um bom livro de autoajuda pode proporcionar a uma vítima deste tipo de relação. Deliberadamente canastrão, Nicholas Cage é o prato principal que gratina o caricato Drácula de Lugosi ao ponto, requentando com seus trejeitos o bife malpassado que supostamente seria um anacrônico vampiro hoje, diante de perigos muito mais indigestos como o pantagruélico consumo de drogas, proporcionado por famílias mafiosas que engordam um batalhão de gulosas autoridades corruptas. O resultado na tela é um cardápio pronto para a plateia degustar com os olhos, muito mais aperitivo que um Bloody Mary.

“Bewaaaare!”: O Drácula matricial do filme de 1931 inspirou a forma clássica com que o personagem foi representando de forma arquetípica no último século, desde os clássicos de terror da produtora inglesa Hammer até os desenhos animados, passando pelos gibis, se tornando presença constante na cultura pop. Em 1994, Martin Landau ganhou o Oscar de ‘Melhor Ator Coadjuvante’ pela sua interpretação de um Béla Lugosi decadente e em fim de carreira em “Ed Wood“, cinebiografia de Tim Burton na qual é esmiuçada a trajetória daquele que é considerado o pior cineasta de todos os tempos, com quem colaborava um Lugosi mal-humorado, viciado em morfina e sempre dotado dos maneirismos do vampiro. Confira a sequência abaixo (Reprodução):
No submundo contemporâneo, definitivamente não é para iniciantes se movimentar à sombra para sugar o sangue de quem põe a jugular ao sol. Ainda assim, o oportunismo de Drácula é muito mais ameaçador que seus caninos, ainda que Nosferatu também seja vítima das circunstâncias: como narcisista que sabe se vestir de injustiçado, ele passa parte do filme reclamando da escassez daqueles acepipes que fariam o banquete de qualquer vampiro gourmet, mas, nesse universo em desencanto, cadê os casais felizes, turistas desavisados, freiras e um ônibus lotado de líderes de torcida? Sobrou algum? No seu contraponto como uma policial honesta, a comediante Awkwafina apimenta a produção, exalando química em dupla improvável com Hoult, este uma boa surpresa quando se considera seu percurso como ator de blockbusters de aventura, como a franquia X-Men, “Fúria de Titãs”, “Jack, caçador de gigantes” e “Mad Max: Estrada da Fúria” ou de dramas juvenis como a série para TV “Skins”.

Detentora de um imponente catálogo de personagens de terror que se encarregaram, entre os anos 1930 e 1940, de garantir o gordo faturamento do estúdio, a Universal pode ter descoberto com “Renfield” uma nova formula muito mais certeira (e menos pretensiosa) para nutrir o bolso dos produtores, brincando com seus monstros em apetitosos argumentos Nouvelle Cuisine, ao invés de simplesmente relançá-los sem gosto a fim de alimentar as novas gerações de público.
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