O filósofo francês Gilles Lipovetsky, em a sua conhecida obra “O luxo eterno” (com Elyette Roux), afirma que durante 25 séculos “o supérfluo, a aparência, a dissipação das riquezas” jamais deixaram de suscitar querelas e críticas ferozes entre pensadores, moralistas, religiosos e correntes políticas. O próprio discurso midiático de hoje se incumbe de manter viva a condenação moral – velada ou explícita – da prática ostentatória e socialmente injusta do luxo herdada dos círculos da nobreza e da alta burguesia. Recentemente, no Brasil, num período de sete meses, cinco pessoas de estrato social modesto foram atropeladas e mortas por veículos Porsche conduzidos por motoristas ricos acusados de comportamento irresponsável, fútil e desdenhoso. Jogadores de futebol, influenciadores, “celebridades digitais” ou personalidades do showbiz são frequentemente expostos e ridicularizados por seus lifestyles “luxuosos”, muitas vezes qualificados como bregas ou cafonas. Filmes e séries que ficcionalizam a vida dos super ricos também deitam e rolam na representação caricata do luxo. Por isso, foi fundamental o Rio Innovation Week (RIW) programar como um dos seus conteúdos principais deste ano o debate sobre a reinvenção contemporânea do luxo. Para essa tarefa foram chamados dez especialistas – empresários de moda e beleza, jornalistas e comunicadores – de um negócio que movimentou globalmente a bagatela de quase 400 bilhões de dólares em 2023, segundo a revista Forbes.

A antiga Estação Marítima de Passageiros, na Praça Mauá, com elementos estilo Luís XVI, torre medieval e vitrais art nouveau no interior, foi – uma vez mais – o “gate” para o futuro antecipado no Rio Innovation Week (RIW) que aconteceu ao longo da última semana (13 a 16/08) (Foto: Flávio Di Cola)
Os eventos da Indústria Criativa do RIW se concentraram no icônico Galpão Kobra que desde os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, detinha o recorde de maior mural grafitado do mundo – o “Etnias”, com 2,5 mil metros quadrados – pintado pelo mundialmente consagrado grafiteiro Eduardo Kobra para celebrar a festa olímpica, até ser superado por outra criação em São Paulo do mesmo artista, em 2017 (Foto: Flávio Di Cola)

Após os três painéis que lotaram o Palco 24 do Galpão Kobra [veja abaixo] no último dia do RIW, a audiência saiu com a convicção de que “luxo” é um conceito mutável que para continuar imperando como uma das atividades mais valorizadas e lucrativas do mundo deve se adaptar às rápidas transformações históricas, sociais, econômicas e – agora com a crise climática cobrando o seu preço – ambientais do planeta. Aqui reside o primeiro consenso entre os palestrantes: as inovações propostas pelo mercado de produtos e serviços de luxo não devem se descuidar um só segundo da seleção e da rastreabilidade rigorosas das matérias-primas, insumos e mão-de-obra que empregam, não só pelo viés da sustentabilidade ambiental e da equidade social, mas também pela rígida manutenção dos altos padrões de qualidade e de acabamento exigidos pelo seu público consumidor.

Mais estruturado ainda que em edições anteriores, o Rio Innovation Week 24 surpreendeu pelo´número de visitantes.
O balanço final do RIW exibe números impressionantes. Segundo os organizadores, o evento recebeu 185 mil visitantes que circularam por cinco gigantescos Armazéns, cinco praças e pelo Galpão Kobra – permanentemente lotados – que integram o complexo cultural-expositivo da Frente Marítima do centro do Rio de Janeiro. O volume de negócios gerado pelo RIW 2024 atingiu 3,8 bilhões de reais, envolvendo 3,3 mil palestrantes, 410 expositores e 2 mil startups – um crescimento de mais de 30% em relação à edição anterior (Foto: Flávio Di Cola)

Ainda nesse campo socioambiental, a marca de luxo do presente e do futuro deve atentar para o estudo, para o respeito e para a pesquisa dos saberes e das riquezas culturais do seu DNA de origem. Como exemplo, a jornalista Giuliana Morrone citou a cultura empresarial das marcas italianas de luxo que se tornaram paradigmas mundiais exatamente pelo seu culto ao “made in”, destacando o caso particular de uma fibra desenvolvida pela Salvatore Ferragamo a partir dos resíduos do bagaço de uma espécie de laranja cultivada em fazendas da própria marca na Sicília. Aqui, predicados como origem, ancestralidade, localidade, tradição, simplicidade, sustentabilidade, rastreabilidade, pesquisa, tecnologia e storytelling original e genuíno se uniram para criar esse “novo luxo”.

Mais estruturado ainda que em edições anteriores, o Rio Innovation Week 24 surpreendeu pelo´número de visitantes.
A jornalista, empresária e influenciadora Alinne Prado (à esquerda) mediou a participação dos convidados do painel “Novos pilares do luxo: histórias inspiradoras que estão moldando o futuro do luxo“: Samanta Piacini, fundadora e CEO da Lemon Basics Boutique; Giuliana Morrone, jornalista, palestrante especialista e autora de temas ESG (Ambiental, Social e Governança), e Renato Antunes, fundador e CEO da Braé Hair Care. O trio sintetizou os pilares do luxo contemporâneo e do futuro em quatro conceitos: durabilidade, sustentabilidade, autenticidade e simplicidade (Foto: Flávio Di Cola)

Outro conceito associado ao luxo contemporâneo e já ajustado às demandas do futuro é este novo mantra do consumo: “menos e melhor”. Essa tendência foi apontada pela empresária Samanta Piacini que advoga um ritmo de aquisição de roupas menos afoito e impulsivo em que o consumidor prefira itens de excelente confecção – evidentemente mais caras – e com características estilísticas mais básicas ou minimalistas, que permaneçam associados ao corpo do usuário durante uma jornada de vida de cinco a seis anos, integrando-se a uma memória de momentos vividos juntos. Na marca fundada por Samanta, uma simples t-shirt, por exemplo, é produzida num “ciclo fechado”, isto é, o mesmo fabricante do tecido planta e processa a fibra, num regime de parceria e fidelidade cultivado desde a fundação da sua empresa. Menos tempo perdido em compras, guarda-roupas mais vazios, qualidade material para uso prolongado, design imune a modismos, origem e rastreabilidade garantidas, vínculo emocional duradouro com a peça que dispensa a descartabilidade consumista – eis mais um combinado de qualidades que se enquadram no espírito do luxo contemporâneo.

Coube a Fernando Torquatto, beauty artist e apresentador, conduzir o painel “Luxo global: as estratégias de grandes marcas internacionais no mercado brasileiro” que trouxe para conversar Anaju Dorigon, atriz, influenciadora e fundadora da grife La Femme 368; Fernanda Rigon, diretora da grife Philipp Plein Brasil, e Claudia Leon, superintendente do shopping VillageMall, no Rio de Janeiro. Para esse trio de forte viés empresarial, o luxo contemporâneo deve ser sensorial, atmosférico, acolhedor e nada ostentatório, mas sem prescindir da criação de um lifestyle autêntico, em que a moda é uma das várias esferas de vivência (Foto: Reginaldo Teixeira/Divulgação)

Por fim, o grupo de especialistas convocado para essa maratona de debates não fugiu dos aspectos psicológicos e emocionais pelos quais o luxo contemporâneo é atravessado, a ponto de ser encarado como questão de saúde mental. A empresária e cientista cosmetóloga Joyce Rodrigues explicou os avanços extraordinários da cosmetologia na Coréia do Sul como consequência do papel da mulher na sociedade coreana. Nesta, o gênero feminino é construído como modelo de perfeição, como um bibelô irretocável em que a pele deve ter brancura e maciez absolutas e os cabelos dotados de sedosidade extrema, além da exigência de apresentação e modos irrepreensíveis. Os produtos e serviços de luxo em beleza na Coréia estão a serviço dessas cobranças inatingíveis e angustiantes, ao passo que no Brasil, esse mesmo tipo de produto de alta gama submete-se às demandas irrenunciáveis de praticidade e rapidez dos consumidores, assim como à extraordinária variedade de tipos humanos dos brasileiros, às mudanças volúveis de aparência e à diversidade de clima e estilos de vida de um país tão vasto como o nosso.

Mais estruturado ainda que em edições anteriores, o Rio Innovation Week 24 surpreendeu pelo´número de visitantes.
Mediado pela jornalista e apresentadora Juliana Sana do programa “É de casa” da TV Globo, o painel “Luxo democrático no mercado de beleza” trouxe Joyce Rodrigues, cientista cosmetóloga e CEO da Mezzo Dermocosméticos. De origem social modesta, Joyce observou desde muito cedo como doenças dermatológicas causavam transtornos psicossociais, principalmente entre adolescentes e mulheres com acne tardia. Para Joyce, luxo e inovação se encontram no desenvolvimento de linhas de produtos “inteligentes” que “enxergam” em cada pele e cabelos individualmente as deficiências a serem corrigidas para disparar sinalizadores regenerativos específicos (Foto: Flávio Di Cola)

Talvez por isso o Brasil seja visto não só como um dos países mais cobiçados pelo mercado de luxo, como também um laboratório riquíssimo, original e surpreendente de onde o resto do mundo poderá extrair lições para forjar conceitos mais leves, democráticos e menos excessivos do que é, ou não, luxuoso.

DO BAOBÁ AO PARQUE TECNOLÓGICO, A INOVAÇÃO TEM MUITAS MORADAS:

A Rio Innovation Week adota como princípio abrigar ecossistemas de inovação de qualquer setor da atividade humana, sejam aqueles produzidos pela cultura hightech contemporânea, sejam os ecossistemas originários de saberes ancestrais.

O estande do SESC RJ trouxe a exposição “Tecno-raízes: temporalidades ancestrais“, representada pela estilização de um baobá, árvore trazida ao Brasil pelos africanos. Neste espaço, os visitantes são convidados a expressar o que esperam do futuro por meio de mensagens escritas em delicadas folhas de papel que ornam esta “árvore”, replicando as experiências de diversas culturas africanas em que os conhecimentos são passados pelos mais velhos às novas gerações em reuniões em forma de roda sob os galhos frondosos de um baobá (Foto: Flávio Di Cola)
Outro espaço dedicado à potência inovadora dos saberes tradicionais foi o dos Alimentos Artesanais em que os visitantes podiam degustar alguns produtos dessa lavra, e bem pertinho do estande da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, vitrine da excelência cientifica brasileira no campo alimentício (Foto: Flávio Di Cola)
Presença na Rio Innovation Week: A maior universidade federal do Brasil, a UFRJ, também abriga um dos mais importantes Parques Tecnológicos do país, onde grandes empresas nacionais e multinacionais, médias, pequenas e startups desenvolvem espaços de inovações integrados aos laboratórios da universidade (Foto: Flávio Di Cola)
As inovações dos dispositivos de Realidade Aumentada (RA), como os famigerados óculos, são uma das atrações clássicas obrigatórias da Rio Innovation Week, inclusive radicalizando cada vez mais esse tipo de experiência sensorial (Foto: Flávio Di Cola)
Segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Saúde Animal, 23% dos brasileiros donos de animais de estimação adotaram o seu primeiro pet durante o período da pandemia. Se fosse hoje, essa carência poderia ser preenchida pela encomenda de um simples e dócil robô (Foto: Flávio Di Cola)

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