Candidato aos Oscars de ‘Melhor Filme’ e ‘Melhor Roteiro Adaptado’, “Entre Mulheres(“Women Talking”, Plan B Entertainment, 2022) pode ser o azarão da 95ª edição do prêmio mais celebrado do cinema, a acontecer no próximo domingo (12/3). Dirigido por Sarah Polley – que começou em Hollywood como atriz-mirim aos cinco anos e chegou a estrelar sucessos comerciais como “Madrugada dos Mortos” (2004) –, a realização concebida a partir do livro da canadense Miriam Toews impressiona pelo caráter visceral e qualidade de produção, a começar pelo elenco que inclui Rooney Mara (“Carol”), Claire Foy (“The Crown”), Jessie Buckley (“A filha perdida”), Ben Wishaw (o “Q” atual da franquia 007), todos contundentes, e veteranas cujos rostos podem ser conhecidos do grande público, mas seus nomes não, como Judith Ivey e Sheila McCarthy, excelentes. É cinemão de responsa, para adulto, do tipo que hoje faz falta em uma Hollywood infantilizada pelo excesso de aventuras de super-herois e afins e que, quando comparece nas telas, faz valer a pena a longa espera por esse tipo de filme.

Baseado em acontecimento real, "Entre mulheres" aborda a assustadora realidade de abuso e violência sexual em uam comunidade fundamentalista religiosa.

A narrativa transporta para um local incerto, provavelmente os Estados Unidos, fato que realmente aconteceu em uma comunidade rural na Bolívia, do meio ao final da década de 2000, quando as mulheres de uma colônia fundamentalista religiosa menonita – minoria cristã evangélica surgida no século 16, espalhada por mais de 60 países e que comumente renega a tecnologia e a modernidade – se reúnem para definir se continuam a tocar a vida fingindo que não nada ocorreu, se permanecem e enfrentam os homens ou se partem com suas crianças e adolescentes, após constatarem aterradora situação de abuso e violência doméstica que atingiu 130 mulheres com idades de três a 65 anos.  

Confira abaixo o trailer oficial de “Entre Mulheres” (Divulgação):

No caso, se trata da descoberta tardia de que foram ao longo dos anos enganadas pelos homens da colônia ao sofrerem, dopadas por anestésico veterinário enquanto dormiam, toda a sorte de estupros e perversas agressões físicas, praticadas pelos homens da comunidade com o aval de rígidos dogmas religiosos que protegem o patriarcalismo, mas lhes negam os direitos de ler, escrever, estudar ou opinar, crimes maquiados como fruto da imaginação ou obra do demônio, quando resultando em gravidez e ainda correndo o risco de serem lançadas ao fogo do inferno sob o preconceito religioso que as condena a serem vistas não como vítimas, mas impuras.

Baseado em acontecimento real, "Entre mulheres" aborda a assustadora realidade de abuso e violência sexual em uam comunidade fundamentalista religiosa.

A misoginia intrínseca, o desrespeito à condição da mulher e a opressão feminina são abordadas tanto como alegorias quanto como triste realidade através dos espirituosos diálogos travados por elas em um celeiro, cenário quase total da projeção, em roteiro assumidamente didático para representar a busca dessas personagens pelo aprendizado que lhes foi negado, mas brilhante em suas soluções narrativas.

A fotografia inspiradíssima de Luc Montpellier, escura e em cores dessaturadas, quase um preto e branco, colabora com o clima de tensão aproximando as plásticas imagens, nos lampejos de flashbacks das agressões, em atmosfera dos filmes de terror sobrenatural que potencializa a visão da diretora do quanto o horripilante contexto vivido por essas mulheres é assustador, ainda mais com o subterfúgio da religião conservadora. Com os homens quase nunca aparecendo, exceto pelo professor mais esclarecido arregimentado por elas para funcionar como secretário da reunião (Wishaw), as sequências de estupro estilizam a violência não para ecoar os desígnios machistas de um filme de ação, mas para exprimir a solidão e subjetividade sufocante de uma minoria que não tem direito à voz.

Baseado em acontecimento real, "Entre mulheres" aborda a assustadora realidade de abuso e violência sexual em uam comunidade fundamentalista religiosa.

Em época de tantas produções audiovisuais alinhadas com o empoderamento proporcionado por movimentos como o #MeToo, algumas papa-níqueis de caráter duvidoso, é uma alento conferir um tema tão espinhoso levado às telas com tanta propriedade, sem clichês.  

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