Primeiro foram as supermodelos. Hoje em dia, não existem mais tops com aquele ar de celebridade que já tiveram um dia Cindy, Linda, Naomi, Claudia Schiffer ou Carla Bruni, num patamar comparável ao das grandes estrelas das telas. Há quem afirme que a era das übbermodels chegou ao fim com aquela que mais faturou na história, Gisele Bündchen. Com a morte nesta terça-feira (19/2), aos 85 anos, de Karl Lagerfeld, o mesmo pode estar acontecendo com os super fashion designers. Na labuta desde 1964, na Chloe, e desde 1983 na Chanel, além de por décadas no comando criativo da Fendi e da sua própria label, seria a fim do kaiser o prenúncio do ocaso?

Karl Lagerfeld (1933-2019) imprimiu sua marca nas grifes para as quais trabalhou, na sua própria label e na forma como a profissão de estilista passou a ser vista pelo grande público na era das celebridades, extrapolando o mundinho fashion para alcançar o estrelato na sua maior plenitude (Foto: Reprodução)
Talvez Lagerfeld se tornado a máxima expressão individual do ápice do qual os criadores de moda desfrutaram, enquanto demiurgos (no sentido platônico do termo), junto aos meros mortais, do desejo divino do bom gosto, quando se tornaram artífices intermediadores do que seria ou não permitido à massa, devidamente favorecidos pelo espaço que a moda passou a ocupar como mola propulsora do consumo e, depois, da construção da identidade, na segunda metade do século 20, em sintonia fina com o papel social das revistas femininas.

Karl assina uma ilustração de Choupette, a gata de estimação que virou celeb. Mesmo mantendo sua vida privada longe dos holofotes, o designer soube tirar proveito de cada aspecto do seu cotidiano e capitalizar a seu favor. Numa era que celebra Andy Warhol e Salvador Dalí como criadores acima de suas criações, o alemão pode ser sido o equivalente desses artistas no meio da moda (Foto: Reprodução)
Quem sabe o alemão nascido em Hamburgo, mas mais parisiense que muito francês, tenha se tornado a efígie dessa face do business com sua personalidade efervescente, envolta numa embalagem de espetáculo aditivada por coleções geniais exibidas em cenários grandiosos e um physique du rôle folclórico dotado de uma maneira única de se apresentar, falando pouco mas como uma metralhadora, com componentes do seu look tão icônicos quanto a peruca loura de Marilyn, o quarteto bigodinho, chapeu coco, bengala e casaca de Chaplin ou a dupla topete & jaqueta de couro de Elvis, provando que, no constante exercício semiótico de ser Chanel renovando Chanel de uma forma que nem Coco faria, aprendeu a usar tudo isso a seu bel-prazer no âmbito de edificar sua própria imagem?

Efusão criativa: com Choupette no centro da mesa, a foto produzida tenta emular o universo de Karl Lagerfeld como furacão pronto para sacudir o mundo da moda. Também fotógrafo, o alemão de origem burguesa e filho de um industrial sueco do ramo leite em pó soube fazer valer para si a máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras. Quem sabe fosse, por isso, econômico nas palavras durante as entrevistas, na contramão da forma como preparava meticulosamente seus looks (Foto: Reprodução)

O emoticon prova o quanto Karl Lagerfeld sabia trabalhar com signos, usando seu próprio corpo como quadro para criar a leitura semiótica de si mesmo. Os cabelos grisalhos arrematados com rabo de cavalo, os óculos escuros de grife, o colarinho indefectivelmente branco e alto, a gravava fininha, as luvas de couro, as jaquetas e calças pretas e o ar blasê viraram, mais que acessórios, elementos codificadores de Karl, assim como a salopette vermelha de botões amarelos e o par de luvas brancas identifica Mickey Mouse (Foto: Reprodução)

Marca de si: Lagerfeld pode ter sido o designer que mais ganhou representações estilizadas de si a partir dos elementos semióticos que usou para compor seu look (Foto: Reprodução)

Cosplay da moda: O site Adorable Fashion Icons Kids Costumes You Have to oferece a fantasia infantil “Elegant Karl” criada por Anna André a partir dos elementos que compuseram o visual com que Lagerfeld se apresentou ao mundo por décadas (Foto: Reprodução)
Bom, soma-se a a isso a enxurrada de declarações polêmicas e atitudes idem. Como ao bater de frente com Meryl Streep, em 2017, quando a estrela, ao declinar na última hora de usar Chanel na cerimônia do Oscar, foi acusada por Karl de ter sido paga para envergar um modelito de outra label. Somente alguém que desfruta do estrelato de igual para igual com uma diva embarca nesse tipo de discussão. Na noite em que seria a recordista pela 20ª indicação à estatueta, a loura saiu disparando que o estilista estragou a ocasião, e nunca o perdoou.

Pau a pau: o ultimate fight entre Meryl Streep e Karl Lagerfeld quase chegou às raias do “quebra-quebra, confusão e pancadaria” das quais os tabloides de fofocas se alimentam. Sem se deixar intimidar pela posição de grande dama do cinema americano que emoldura a atriz, o estilista abriu o verbo e, quando a coisa ficou feia demais e ele corria o risco de ser metralhado nas redes sociais, tratou de soltar um pedido de desculpas mais formal que smoking de crooner de boate (Foto: Reprodução)
Ou quando Lagerfeld esteve em São Paulo, em outubro de 2013, numa festa para promover a Chanel, durante a SPFW, que contou com Diane Kruger e Joshua Jackson. Protegido por um cercadinho, o kaiser virou führer e não só se recusou a selfiar com as socialites paulistanas que gastaram os tubos na grife para fazer bonito na festa como não permitiu que aquelas que não tinham o shape aprovado por ele posassem diante do backdrop, num caso de eugenia fashion.

Karl Lagerfeld soube melhor que qualquer outro estilista da Semana de Moda de Paris utilizar sua imagem pública a favor das vendas. Seu carisma – que eventualmente podia até ficar ligeiramente arranhado pelas declarações que proferia, no jeito abrupto de falar com sotaque alemão -, persistiu os mais de 60 anos de carreira. “Ele sabia resgatar antigos produtos do catálogo fora de linha da Chanel, reciclar, renovar e fazer uma velharia virar objeto de desejo das garotinhas de 15 anos”, afirma a jornalista de moda Iesa Rodrigues (Foto: Reprodução)
A geração que se firmou na moda a partir da virada dos sessenta/setenta está desaparecendo. São aqueles que viram a moda sair do gueto dos muito endinheirados para assumir a posição de dianteira como fenômeno no espetáculo da vida, ao lado do cinema, música, esporte e cultura pop. Foram aqueles que criaram suas próprias marcas ou deram continuidade a impérios do estilo (ou ambos, como Karl Lagerfeld), tornando suas personas a pièce de resistance de ateliês aos poucos adquiridos por corporações, fundados por nomes emblemáticos como Coco Chanel, Christian Dior, Pierre Balmain, Cristóbal Balenciaga, Emilio Pucci e Hubert de Givenchy. Gianne Versace e Alexander McQueen se foram prematuramente. Claude Montana, Thierry Mugler e Kenzo Takada saíram de cena. Gianfranco Ferré morreu em 2007, Yves Saint Laurent em 2008, Sonia Rykiel em 2016, Azzedine Alaïa no ano seguinte. Valentino Garavani passou o bastão. Donatella e o enfant terrible Jean Paul Gaultier permanecem na ativa, assim Giorgio Armani ainda está na fita, prestes a completar em julho os mesmos 85 anos que levaram Lagerfeld. Bom, Galliano está lá, na Maison Margiella, mas não é a mesma coisa dos bons tempos de enfant gaté na Dior.

Catwalk ou marcha imperial? Assim como John Galliano na Dior, a presença de Lagerfeld no final dos desfiles era ão aguardado quanto a coleção desenhada (Foto: Reprodução)
Com a saída de Marc Jacobs da Vuitton há alguns anos e o desaparecimento dessa espécie de estilista-sensação das passarelas de Paris, pode acontecer um fenômeno, conforme alerta a editora de moda do Jornal do Brasil, Iesa Rodrigues, na labuta há quase ano tempo quanto Lagerfeld e integrante da Chambre Syndicale de la Mode Parisienne desde 1981: “Pode haver um esvaziamento na cidade-luz. E a morte de Karl Lagerfeld pode ter efeito rápido em toda a cadeia da moda. Não falo nem apenas da questão do atrativo para se ir à Paris conferir os desfiles, mas do fato de a genialidade de um Karl ser combustível para toda a cadeia produtiva do setor. Não só das fast fashion populares, pois temos as de luxo. Isso é um problema”.

Maria Grazia Chiuri: elegantíssima, a atual diretora criativa da Dior, apesar do imenso talento, pode não vir a fazer jus ao carisma que marcou a toda uma geração da estilistas, da qual Karl Lagerfeld foi o sumo pontífice (Foto: Reprodução)
Faz sentido. A engrenagem da moda se fez valer, nas últimas décadas, não apenas do equilíbrio entre o potencial criativo e apelo comercial das brands, como também da presença do fashion designer como figura de proa genial, alçado ao olimpo artístico. “São Michelangelos das agulhas, Da Vincis da couture, Botticellis da costura”, sugere Iesa. “Íamos a Paris para ver Lagerfeld na Chanel, Galliano na Dior, Jacobs na Vuitton, Valentino Garavani na Valentino. Sem eles, o evento perde. Vamos para onde agora? À Nova York ver Marc Jacobs, Tom Ford ou Victoria Beckham, se ela não desfilar em Londres? Ou migrar para a semana da moda em Los Angeles para conferir o August Getty, que tem presença cênica?”, pergunta a jornalista.

Menino de ouro: integrante da poderosa família Getty, o jovem designer August melhor representa a faceta efusiva dos fashion designers que a safra que hoje perambula pelos backstages da Semana de Moda de Paris. Seria possível o epicentro da moda sair da França rumo a Los Angeles? (Foto: Reprodução)
As indagações de Iesa têm razão de ser. Ninguém deixa de respeitar a qualidade criativa de Hedi Slimane na Céline, de Raf Simons (agora na Calvin Klein, em NY), de Maria Grazia Chiuri na Dior, de Pierpaolo Piccioli na Valentino. Peter Dundas, por exemplo, fez um trabalho bonito na Pucci. Entretanto, não se trata de capacidade de conciliar estilo com as aspirações comerciais dos grupos que detém as marcas. O buraco é mais fundo. Palavras como elan, mojo, brilho ou tempero poderiam servir, mas Iesa Rodrigues vai no ponto: “É carisma. Criadores do naipe de Lagerfeld precisam ter carisma, tão fundamental para o circo da moda. Paris pode estar perdendo isso”. Será que Virginie Viard, anunciada pela Chanel como sucessora de Karl, segura as pontas?

Karl Lagerfeld e Virginie Viard: braço direito do estilista, a morena foi oficializada como a nova diretora criativa da Chanel. Em janeiro, foi ela que comnpareceu à passarela da Semana de Alta Costura de Paris, no lugar dele, o que gerou especulações (leia mais aqui) (Foto: Reprodução)