Já era tarde quando ÁS adentrou a sala de desfile da estreante Ocksa, na São Paulo Fashion Week, neste sábado (27/4), ao lado de outro jornalista. O show estava prestes a começar, a luz seria apagada em seguida. Nós demoramos a sair da sala de imprensa, escrevendo e apurando matérias. Por isso, o salão já estava lotado, nossos lugares haviam sido ocupados e ficamos atrás da plateia, de pé, como acontece quando não dá tempo de chegar e a gente precisa de alguma forma conferir aquela coleção que vai ser exibida em minutos. Por uma dessas coincidências da vida, estávamos ao mesmo tempo “tão perto, tão longe”, como diria Wim Wenders, da queda do modelo Tales Cotta, quando este foi de queixo ao chão para em seguida ser prontamente socorrido, levado de maca e falecer cerca de algum tempo depois, conforme foi noticiado, a caminho do hospital. Nossa distância da cena era suficientemente longe, logo atrás da última fila (uma imensidão, quando se trata de cobrir um desfile e querer observar a fivela de um cinto), mas imensamente perto – pouquíssimos metros –, se considerarmos que tudo ali se deu bem na nossa frente, quase na altura de onde nos encontrávamos, pouco a estibordo. Quando o rapaz foi cuidadosamente transposto para a maca, pude notar que seu braço, que antes parecia sacudir em movimentos de convulsão, agora estava inerte. Tive uma má impressão.

O modelo Tales Cotta desfila para a Ocksa, na SPFW, momentos antes do acidente que se mostraria depois fatal (Foto: Divulgação)

Desde a noite de sábado, quando ainda estava na Arca, na Vila Leopoldina, onde aconteceu o evento, e durante o dia de ontem, passei o tempo observando, lendo notícias publicadas online, checando o burburinho nas mídias sociais sobre o assunto. Digerindo. Assisti a matéria no Fantástico. Pude conferir as declarações serenas da mãe e da irmã do moço, mineiro de Manhuaçu, 25 anos. Ao que tudo indica, levava vida saudável, não usava drogas. Atribuem o incidente “à hora dele” e parece lhes confortar o fato de que ele morreu fazendo aquilo que amava. O ocorrido, então, uma fatalidade. Fatalidade que não tomaria mais que poucas linhas nos obituários, não fosse ele um modelo lindo de cabelos platinados tombado sob os holofotes de um evento de visibilidade do calibre do SPFW. Poderia ter caído em qualquer lugar, mas o destino lhe (nos) pregou uma peça, escolheu a passarela. O circo estava armado, ainda que, pelo publicado na mídia que cobre o factual, e segundo o boletim de ocorrência, tenha ocorrido morte súbita sem razão aparente e não haja vestígios Nos primeiros exames, nem no cérebro nem no coração, que indiquem a causa mortis. Parece que vai levar algum tempo (ouvi falar em 60 dias) para que o motivo exato seja descoberto. Okay. Vamos aguardar.

Equipe de socorristas de plantão no SPFW entrou em cena assim que de percebeu que o Tales Cotta havia realmente tombado na passarela do SPFW neste sábado (27/4)  (Foto: Instagram / Reprodução)

Mensagem publicada por Heloisa Cotta, mãe do modelo, no seu próprio instagram sobre a conversa que tiveram por telefone pouco antes de ele adentrar a passarela da SPFW (Foto: Instagram / Reprodução)

A organização do evento assumiu postura digníssima. Tão logo se constatou que a queda não era uma performance artística (até eu me perguntei se não seria), mas acidente, pelo menos uma meia-dúzia de socorristas rapidamente adentrou a passarela, o som parou, o desfile interrompeu, as luzes se acenderam e era possível perceber o cuidado com que procuravam retirar o modelo do chão para colocá-lo na maca, de forma a preservar as condições ortopédicas. Levou o tempo necessário e ele saiu de lá sem que se soubesse o que viria em seguida, antes de o desfile recomeçar do zero. Ninguém imaginava que o final seria necessariamente trágico, sequer se pensou em morte. Poderia ser qualquer coisa e o desfecho, quem sabe, outro. Ele poderia até sair bem do atendimento, atribuindo tudo a um mal-estar, um choque térmico, uma pressão baixa, qualquer coisa. Hoje, estaríamos rindo do susto e considerando tudo pitoresco.

Tão logo foi devidamente imobilizado na passarela, para a sua segurança, o modelo Tales Cotta foi levado para o atendimento médico, sob à vista de um público estupefato com a ocorrência (Foto: Instagram / Reprodução)

Assim, me parece um tanto bizarro quando leio nas mídias digitais trocentas opiniões, “achismos”, comentários de gente de todos os tipos que, sob a capa da profundidade, a pelerine da moralidade, o trench-coat de indignação, não exalam mais que frivolités, baboseiras epidérmicas maldosas com o mesmo teor das fofocas registradas em crônicas da vida mundana na corte publicadas nos periódicos franceses do século 18 acerca do último penteado burlesco de Maria Antonieta ou do tamanho dos laços nos cabouchons dos seus sapatos, assuntos do seu mais recente rega-bofe. Sorry, seres humanos, mas sou otimista; ainda espero mais de vocês.

Tales Cotta é retocado pelo beauty artist Max Weber minutos antes de adentrar a passarela do SPFW (Foto: Instagram / Reprodução)

O mundo não aprendeu nada. Só mudaram os meios. Li de tudo: “Ah, o evento é insensível, deveria ter sido interrompido e os  desfiles seguintes, cancelados.” E não foi interrompido para que o rapaz pudesse ser atendido? Alguém desconfiava que Tales iria morrer mais tarde? “O pobre do rapaz estrebuchava no chão enquanto a catwalk prosseguia, com modelos alheios a tudo desfilando”. Oi? Havia poucos modelos por vez na passarela, um na ida e outro na volta, e foi só quando justamente a modelo que vinha depois titubeou que se soube que a queda de Tales não era performática. Parou tudo. “Capitalismo selvagem!” A direção do SPFW consultou as grifes que desfilariam depois e seus envolvidos, se eles queriam cancelar ou não suas apresentações. Segundo nota enviada à imprensa, a opção por manter os desfiles foi dada. Antes de cada show seguinte, havia um minuto de silêncio (vários na verdade) com locução em off pedindo pelo rapaz.

O rosto simétrico e os traços perfeitos de foram o passaporte para Tales Cotta ingressar no mundo da moda (Foto: Instagram / Reprodução)

Desculpa, mas, em caso de cancelamento dos desfiles subsequentes, como ficam as costureiras, overloquistas, modelistas, secretárias, funcionários de almoxarifado, motoristas de frete, empacotadoras, o escambau, toda aquela gente que faz, que depende da imagem gerada pelos desfiles das grifes para as quais trabalham? Deixam suas famílias, que dependem dos seus salários para viver, passarem fome durante seis meses (tempo da estação), por conta do seu bom-mocismo virtual de fachada? Hello, amor, o mundo não precisa de escoteiros digitais, de preceptores intenáuticos, de baluartes dos bons costumes on-line. O mundo precisa de amor. Guarde sua verborragia, seu IPhone de última geração na gaveta e faça como Jesus. Dispa seu celular – através do qual você soube do ocorrido, via informações nem sempre confiáveis –da capinha da moda, e vá descalço prestar algum serviço humanitário, lembrando que a Bíblia te ensinou a não julgar. Ainda mais quando você está julgando para ficar bem na fita, ganhar likes, seu fariseuzinho fashion.

Tales Cotta: a curta e meteórica carreira do modelo mineiro formado em educação física vai ficar para a história por conta dos registros de uma das mais inesperadas ocorrências do mundo das passarelas (Foto: Instagram / Reprodução)

Vi de tudo nesse último dia: até fashionista conhecido que não foi ao evento caprichando no cristal japonês para publicar stories tentando ressignificar a morte de Tales, impregnando a mesma com verves de sistema, em associações semióticas duvidosíssimas. Comentários em instagrams plenos de sabedoria de almanaque.  Lições de moral de gente que pegou o bonde pela metade, só conhece a moda através da sua codificação na ficção, em filmes e novelas. Corolários de quem nunca sentou o rabo ao menos na tv, na falta de fonte melhor, para assistir filmes que lidam com a seriedade do ato de julgar, como “Doze homens e uma sentença” (1957). Ou sequer leu “As bruxas de Salém“, de Arthur Miller.

Tales Cotta posa para o registro de um evento de beleza organizado pelo produtor de casting Beto Floresta (Foto: Instagram / Reprodução)

A vaidade grita. É preciso dizer alguma coisa, mesmo que seja asneira embalada em perspicácia. Freak show, circo dos horrores, gabinete de curiosidades, quermesse oportunista, bando de P. T. Barnum digitais que se aproveitam da tragédia e da fragilidade humanas para faturar curtidas. Fogueira de vaidades macabra que não respeita a família do morto e trucida um evento cuja edição, do ponto de vista político, foi histórica.

A esse tribunal on-line “profundidade zero” pode ser atribuído o fenômeno que o filósofo Domenico De Masi chama de desorientação. Para o professor de sociologia da faculdade La Sapienza, em Roma, a sociedade anda incapaz de distinguir entre o bom e o ruim, o feio e o belo, o verdadeiro e o falso, a direita e a esquerda. Em seu “Alfabeto da sociedade desorientada” (Objetiva), ele expõe a visão de que, na ausência de modelos de comportamento que antes eram gerados pelas religiões e ideologias, a sociedade pós-industrial não dispõe de crenças reguladoras das relações sociais. É mais ou menos isso: qualquer um pode crer em qualquer coisa. Até sobre a questão da morte de Tales Cotta, levantando especulações a torto e a direito. O resultado está aí: a morte do rapaz atropelada por toda espécie de “opinião”, o SPFW julgado sem propriedade alguma, um macarthismo de oitava categoria elevado a níveis de rede social e uma tragédia reduzida a uma corrida maluca por likes e seguidores, por quem der na telha. O mundo já tem problemas demais para se render a essa feira de variedades articulada por intérpretes de ópera-bufa encenando catarses de vitrine. Engajamento de butique, churumela delivery, nhem-nhem-nhém volátil, líquido.

Domenico De Masi: o pensador italiano crê que a falta de modelos de conduta na sociedade pós-industrial se reflete numa desorientação de padrões de comportamento e valores sociais (Foto: Reprodução)

Num passado remoto, na Antiguidade clássica ou na Europa Medieval, acreditava-se que a morte mais honrosa de um guerreiro seria em combate. A função de Aquiles, Pátroclo, Heitor, Ulisses, Ragnar, Thor ou de Ricardo Coração de Leão, pouco importa quem, era lutar pela sua causa. Nada mais digno que morrer por ela no exercício daquilo que se amava. Em outros tempos, Tales seria considerado sortudo. “Ele morreu fazendo o que gostava”, disse sua irmã ao Fantástico e sua mãe a um punhado de jornalistas. Ele deve ter lutado muito, entre tantos, para chegar à passarela do SPFW e, se não pode dar voos maiores ainda, é porque a vida não permitiu. Respeite isso. E o luto da família.

Se isso não for suficiente, vale a máxima do showbizz para você refletir: the show must go on. Regra desde quando o teatro existe: vale o respeito pelo público (que é soberano) e por quem sucumbiu e não pode estar lá fazendo o que ama. A bailarina torce o pé, o cantor de ópera pega uma friagem e fica rouco, o ator adoece ou morre atropelado. O espetáculo não para, dá-se um jeito na coxia, até por respeito ao ofício, a quem tombou. A moda não é arte?

Morta no final de 2016, aos 67 anos, em decorrência de um infarto, Carrie Fisher, ícone da cultura pop por sua participação em “Star Wars”, vai comparecer na produção que encerra a nova trilogia intergaláctica, a ser lançada mundialmente em dezembro. Para não recriá-la em computação – recurso hoje possível – os produtores da Disney optaram por adaptar cenas de arquivo da atriz filmadas, mas não utilizadas em “O último jedi” (2016). Solução encontrada, com o aval da família, para respeitar a sua imagem e o público, sem gerar polêmicas. O show prossegue… (Foto: Divulgação)

Quem é do palco conhece a liturgia, não obstante as opiniões de quem está de fora. Em 1972, o ator Sergio Cardoso, ícone da dramaturgia, faleceu quando faltavam 28 capítulos para o final da novela “O primeiro amor“, da Globo. Foi substituído às pressas por Leonardo Villar. A Disney precisou usar imagens de arquivo de Carrie Fisher para por de pé Star Wars IX“, que vai estrear em dezembro, após a morte da atriz. Poderia ter alterado o roteiro, riscado a General Leia Organa do mapa. Mas existe o tal respeito ao público, basta perguntar isso a uma Fernanda Montenegro. É sagrado. Cacilda Becker sofreu derrame na coxia, enquanto encenava “Esperando Godot“, e saiu do teatro direto para o hospital, com o figurino de seu personagem no corpo, vindo a falecer pouco mais de um mês depois. Ninguém culpou Becket. Então, pegue sua moralzinha judaico-cristã de classe média e vá dar um rolê. Nem todo mundo pensa como você. Não imponha ideias que você nem sabe exatamente se realmente as têm. E não tenha opiniões sem refletir.

Sergio Cardoso contracena com Marco Nanini em “O primeiro amor”, sucesso global do início dos anos 1970 (Foto: Reprodução)

No mais, convenhamos: enquanto você está aí, dividindo o mundo em direita e esquerda, maus e bons, sistema selvagem e pseudo-abnegação infantiloide, tentando impregnar a morte de Tales Cotta de significações, todos esses seus comentários na ágora digital estão à disposição, sendo usados por corporações e governos para que você seja manipulado. E você não está nem aí, preferindo fazer isso mesmo: sendo acusador, tribunal, juiz e júri, emulando uma versão patética de Joseph MacCarthy nessa caça às bruxas on-line para ver se fica famoso…

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