Algumas obras cinematográficas são a cara do seu tempo. É o caso dos épicos religiosos dos anos 1950, das comédias românticas protagonizadas por Rock Hudson e Doris Day à véspera da revolução sexual ou as politicamente incorretas de Mel Brooks e Monty Python nos anos 1970/80, quando era possível baforar cigarros até mesmo dentro da cabine de um voo transcontinental sob a pecha de ser considerado sexy. E o romance baba-espírita Ghost“, que marcou a virada dos noventa. Ou ainda “Matrix” que, no limiar do novo milênio, inaugurou um estilo de coreografia de luta que virou escola, além de marcar sua era pela arrojada concepção da realidade virtual numa trama que emularia um universo de realidade ampliada prestes a se consolidar na vida real. É o caso de “Tenet” (idem, Warner Bros., 2020), thriller de ação com pitada de sci-fi de Christopher Nolan, diretor que, desde “Amnésia” (2001), vem elevando o blockbuster à condição de cinema de autor.

A distensão das camadas temporais – presença constante na obra de Christopher Nolan – é o tema central de “Tenet” que, além de suas significações pela narrativa e pelo período em que foi lançado, ainda carrega nas costas a responsabilidade de trazer o público de volta às salas de exibição, após o confinamento (Foto: Divulgação)

Programada para estrear em julho, a produção mais aguardada do ano foi varrida pela pandemia, mas virou sucesso. Deu a volta por cima, acabando nas salas de exibição a partir de setembro e faturando uma graninha , mesmo com os distribuidores ainda receosos de promover lançamentos. Por esse périplo para chegar ao circuito mundial, “Tenet” aterrissa nos cinemas brasileiros como longa-metragem emblemático. Confusão de grande orçamento? Filme-reflexo da mixórdia que virou 2020? Mais que isso. Ainda que visceral por essa trajetória que dedura a convulsão geral diante de uma crise global, a nova produção de Nolan carrega outros atributos afinados com os novos tempos.

O público se assombra com as cenas de ação de “Tenet”, repletas de um simultâneo vai-vem temporal e carro-chefe dessa ambiciosa produção de Christopher Nolan (Foto: Divulgação)

A narrativa, que trata de um agente (John David Washington) que precisa lidar sozinho com uma ofensiva capaz de por em risco a humanidade, dialoga estreitamente com o momento atual, no qual a sobrevivência do planeta depende da compreensão panorâmica daquilo que está acontecendo. Se, no mundo assolado pela covid-19, nos encontramos perplexos sem saber exatamente onde tatear, o protagonista dessa ficção científica com ares de filme de espião praticamente reproduz, estupefato, um desejo na ordem do dia: tocar a bola para frente, custe o que custar, mesmo às cegas. Nesse aspecto, este estonteante espetáculo, de impacto visual elevado à décima nona potência, traz como destaque sua premissa temporal com toques apocalípticos, se aproximando alegoricamente daquilo que estamos vivendo.

A equipe de filmagem de “Tenet” toca o rebu: o resultado das imagens, em edição picotadíssima e nervosa, aditivado pelo roteiro que leva, ao mesmo tempo, a história de trás para e a frente e vice-versa, confunde o espectador, mas é uma beleza de se ver! (Foto: Divulgação)

Verdade seja dita, Nolan não está preocupado com os personagens, quase todos mal-desenvolvidos ou nunca aprofundados, à exceção da mocinha (Elizabeth Debicki), cujo percurso nos permite criar empatia. Os demais são tão superficiais quanto uma camada de bloqueador solar, o que não parece ser um problema para o cineasta. Vaidoso, ele não está nem aí: o que pretende é embaralhar a cabeça do público com uma vigorosa narrativa, graficamente impressionante, na qual uma de suas obsessões – o fluxo cronológico – anda em sentidos inversos, de forma que se torna impossível ao espectador muitas vezes entender o que está se passando à sua frente. Piração, mas não é só isso. Ele ainda brinca com outro de seus fetiches: os labirintos da percepção. Tudo isso não é necessariamente ruim. Só confuso.

Saville Row: criado por Jeffrey Kurland, o figurino de “Tenet” é ponto alto do filme. A alfaiataria bem-cortada se encarrega de imprimir elegância a uma trama cool, trazendo Christopher Nolan para algum momento entre meados dos sixties e o início dos seventies, quando os filmes de roubo e as aventuras de espião adquiriram a aura que consolidou plasticamente esses gêneros. O ex-“Crepúsculo” Robert Pattinson prova ter o melhor shape do momento em Hollywood para vestir um terno, podendo no futuro, quem sabe, ameaçar no ranking de “mais stylish” o lendário Cary Gant, famoso nos bastidores da Era de Ouro por envergar um smoking como ninguém (Foto: Divulgação)

Ao contrário, “Tenet” é bom entretenimento, seja enquanto delírio visual, seja como exercício de estilo que flerta com a elegância do cinema de ação inglês dos anos 1960, na classe, nas sequências de roubo, no cinismo e no figurino, naquela trilha deflagrada pelos primeiros James Bond. Até o caricato vilão de Kenneth Branagh tem sua vez. Poderia perfeitamente se inserir na galeria de tipos bondescos que inclui o satânico Dr. No, Blofeld, Goldfinger ou Scaramanga. De tão canastrão, é pérola.

Girafa de 1,90m: como uma sofrida bond girl, a altíssima franco-australiana Elizabeth Debicki (“O Grande Gatsby”, “Viúvas, “MacBeth”) é a única no elenco que chega a despertar interesse na plateia. O público, na verdade, está ocupadíssimo tentando decifrar o que se passa à sua frente, em cenas geniais, mas incompreensíveis (Foto: Divulgação)

Portanto, pouco importa se a plateia vai sair da sala de projeção sem saber exatamente o que assistiu. Ela segue feliz por se sentir participando de um filme metido a cerebral, já que o que conta é a esfuziante carpintaria estilística. E, óbvio, sua conexão com a incompreensão de uma era pandêmica de tantas incertezas. Para driblar essas brechas do roteiro, Christopher Nolan lança mão de um recurso habitual: a todo momento suspende a ação para, na voz de algum personagem, explicar o que está rolando.  Okay, tintim por tintim, saco. Mas, está bom assim, ainda que essas escolhas retirem a emoção do público, que não consegue nunca se colocar no lugar do elenco por não entender direito a história. Empatia zero, catarse idem, mas – epa! – montanha-russa garantida. Vale!

Vilão bom é vilão afetado: com sotaque regado a vodca e caviar, o mafioso russo interpretado por Kenneth Branagh em “Tenet” é tão over que poderia participar de uma aventura do agente cômico Austin Powers (Mike Myers). Por isso mesmo, é delicioso! (Foto: Divulgação)

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