Desprovido dos recursos alegóricos de costume e na crista do sucesso após “Pobres Criaturas” (Poor Things, 2023), o grego Yorgos Lanthimos causou reações contraditórias no último Festival de Cannes com “Tipos de gentileza” (Kinds of Kindess, Searchlight Pictures e outros, 2024), que acaba de estrear no Brasil. O espectador pode esquecer aquele aparato esquisitão que geralmente emoldura as produções-cabeça do diretor, pero no mucho. Podem até sair de cena estilizações como a Era Vitoriana futurista do longa-metragem que conferiu o segundo Oscar a Emma Stone, a exagerada corte barroca inglesa de “A favorita” (The Favourite, 2018) ou a distopia com glacê burocrata-estatal na qual aqueles que não encontram sua cara metade são transformados em animais, a despeito dos esforços de gaveta do rolo compressor governamental, de “O Lagosta” (The Lobster, 2015), mas engana-se quem imagina que este “pequeno filme” do diretor, interpretado por parte do elenco de “Pobres Criaturas” enquanto este era finalizado, proporciona menos estranheza pelas três narrativas supostamente banais que se entrelaçam através de um personagem do qual só conhecemos suas iniciais, R.M.F. Pelo contrário, Lanthimos continua explorando a natureza das relações humanas e acentuando absurdos por debaixo de uma capa de suposta normalidade, através de artificialidades que conferem aos personagens, ainda que agora inseridos em ambientações cotidianas, um estranheza capaz de embrulhar o estômago.
Confira abaixo o trailer oficial legendado (Divulgação):
Pouco importa se aparentemente as noivas de Frankenstein estão, por hora, engavetadas pelo diretor, que agora lança mão de gente como a gente nesses episódios em que o elenco atua como trupe teatral interpretando criaturas diferentes em cada história. De perto ninguém é normal e o longa-metragem faz questão de deixar isso claro. Como contos, as narrativas são apresentadas de forma a revelar a bola da vez de Lanthimos: a dependência de relações tóxicas e sua completa submissão a comportamentos abusivos, algo que deveria ser bizarro, mas é tratado pela humanidade como aceitável.

A realização não se furta a acentuar esse aspecto repulsivo da natureza humana, seja pela fotografia hiperrealista repleta de cores saturadas, pelos enquadramentos que sugerem filme de terror ou pela música e edição de som assustadoras, incluindo os silêncios, que em dados momentos podem fazer a plateia querer acreditar que vai surgir na tela algo sobrenatural que justifique o que se vê. No fim, é chocante a constatação de que se trata apenas de a humanidade sendo ela mesma.

São várias camadas possíveis de interpretação costuradas pela acidez do roteiro áspero que o diretor escreveu junto Efthimis Filippou, velho colaborador, todas versando pelo viés da dominação, esbarrando em questões nevrálgicas hoje, como o cancelamento, a urgência em seguir modelos éticos forjados em uma sociedade desorientada e a necessidade de validação.

Jesse Plemons se revela ótima aquisição ao elenco de figurinhas carimbadas do diretor, que inclui pela terceira vez Emma Stone e encorpa com Willem Dafoe e Margaret Qualley, com destaque para Mamodou Athie em pequenos papeis, mas expressivo.
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