* Por Alexandre Schnabl e André Vagon

Sucesso da Broadway nos anos 1970 e na remontagem de 2013, Pippin está em cartaz no Rio, no Teatro Clara Nunes, em adaptação inspiradíssima sob a batuta da dupla  Charles Möeller e Claudio Botelho. O enredo romanceia a corte de Carlos Magno (742-814), fundador da dinastia carolíngia e imperador do Sacro Império-Romano Germânico, que dominou a Europa por cerca de 700 anos, e traz como protagonista Pippin (ou Pepino, em tradução literal), filho mais velho do monarca que anseia pela busca de um significado para sua existência, de preferência enveredando por façanhas  que possam revelar alta dose de espetaculosidade. Para quem imagina que se trata de um musical de cunho político, que fique claro: nada disso! Trata-se de um digníssimo produto do teatro musical dos seventies que não envelheceu, com pouquíssimo rigor histórico e livremente baseado em personagens reais.

Sucesso da Broadway que influenciou a estética dos anos 1970, “Pippin” está e cartaz no Rio em montagem que leva a assinatura Möeller & Botelho (Foto: Divulgação)

O original – que serviu de matriz para a abertura original do “Fantástico” a partir da primeira versão brasileira (1974), encenada no Teatro Bloch e que trazia no elenco Marília Pêra, Marco Nanini, Suely Franco, Tetê Medina, Ariclê Perez, Carlos Kroeber, Sandra Pêra e Ronaldo Resedá –, papou prêmios Tony e teve direção e coreografia de Bob Fosse. Assim, além da movimentação típica do trabalho desse artista, o espetáculo ainda carrega aquela pecha burlesca setentista que bebe do teatro popular do início do século 20. Em moda na época, esse resgate costumava vir acrescido do desbunde característico da contracultura na irreverência, no gestual, no rompimento eventual da quarta parede, no figurino que mesclava as malhas colantes do glam rock com a levada hiponga, se aproximando do mambembe. Esse tipo de postura despojada, meio largadona, se reflete na atuação de Felipe de Carolis que, além do papel principal, acumula a função de produtor associado.

As imagens burlescas da primeira montagem brasileira de “Pippin” marcaram a cena teatral da época e se difundiram por outros meios, em estética que convergia com os Secos & Molhados e os movimentos glam e hippie (Foto: Reprodução)

Carolis procura acentuar o volúvel périplo do personagem por um sentido de vida impregnando sua interpretação com aquela voltagem de imediatismo e bipolaridade que marca a Geração Z, incapaz de se manter em linha reta em função dos múltiplos apelos de um cotidiano telêmico: as infinitas possibilidades de caminho fornecidas pelas  inúmeras telas de aplicativo abertas num smartphone, por exemplo. Sintetizadas na figura de Pippin, são as tais relações líquidas – termo cunhado pelo pensador Zygmunt Bauman que se tornou senso comum nos últimos anos – que conduzem um percurso frágil, cujos propósitos igualmente tênues e pessoas tidas como descartáveis são dispostos conforme o sabor do momento.

Felipe de Carolis e Totia Meireles protagonizam a nova versão brasileira de “Pippin” nos papeis que já pertenceram a Marco Nanini e Marília Pêra (Foto: Divulgação)

É nessa direção que “Pippin” se revela tão atual. A remontagem acerta quando associa subliminarmente a desgastante maratona em busca do estrelato social ao desejo febril de querer causar vivido hoje através do showbizz online proporcionado pelas mídias sociais. Nessa campo, o musical é terreno fértil: se, na época em foi concebido, seu texto convergia com a obra seminal que reflete esse aspecto social – “A sociedade do espetáculo” (de Guy Debord, 1967) –, sua remontagem agora é oportuna, em tempos de vida privada vertida em feira de vaidades via Instagram, Stories, YouTube  e Facebook. Assim, a caprichada tradução das letras a cargo de Claudio Botelho se encarrega de acentuar essa premissa nas entrelinhas, nada óbvia, mas dando conta do recado. Para bom entendedor, meia rima basta, e a carapuça da plateia cai.

Na pele de Totia Meireles, o mestre de cerimônia que conduz a narrativa de “Pippin” representa o desejo do indivíduo de brilhar na vida, estabelecido na interseção entre a simples existência cotidiana e o apelo do showbizz. Na performance, o personagem criado por Stephen Schawartz reproduz a tradição cabida àqueles que anunciavam as atrações nas trupes mambembes do teatro de rua medieval, que acabou influenciando dramaturgos como Molière e mais tarde encontraria expressão no métier dos apresentadores de circo e show de variedades, como P.T.Barnum (Foto: Divulgação)

Tudo isso nessa montagem é massinha de modelar suficiente para Charles Möeller fazer a festa. Conhecido pelo excelente acabamento cênico que destaca o apuro visual, uma constante no seu trajeto teatral, o diretor pinta e borda aqui: a estética de trupe medieval ecoa pelo visual 1970 retrô devidamente atualizado. Os figurinos de Luciana Buarque, o sempre impecável visagismo de Beto Carramanhos, a iluminação inspirada de Rogério Wiltgen e a excelente cenografia de Rogério Falcão, acrescida de inesquecíveis adereços de cena (entre eles um ganso que sozinho já vale a peça), por si justificam a ida ao teatro.

A direção de arte caprichada de “Pippin”, com o colorido esfuziante dos figurinos e do light design, é um atrativo a mais para o público que anda lotando o Teatro Clara Nunes, no Rio (Foto: Divulgação)

No elenco, Totia Meireles deslumbra como a mestre de cerimônias, e a única ressalva não é sua responsabilidade: como a estrela tem ombros largos, seu figurino não leva isso em conta e o todo compromete aqueles clássicos movimentos de bracinhos à la Fosse, escola coreográfica pela qual Alonso Barros transita tão bem. No fundo, pouco importa. Totia é Totia, e o cenário musical teatral carioca agradece, pelo menos desde aquele Chorus Line no meio dos anos oitenta. Ao lado da sua supremacia, dois veteranos dos palcos também engolem as cenas: Jonas Bloch e Nicete Bruno, impagáveis.

Burlèsque couture: o marcante figurino de “Pippin” colabora no tom da narrativa, num resultado que sofistica o caráter mambembe imposto pelo contexto (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Guilherme Logullo diverte com o seu Lewis, cuja pantomina beira deliciosamente o cinema mudo, e é delicioso ver Adriana Garambone de volta ao palco, linda como sempre. A atriz, que nos últimos tempos anda fazendo um sucesso danado em novelas bíblicas e de época, deveria comparecer com mais constância no teatro musical. O público merece.

Garambone trouxe o trombone: ao lado de Guilherme Logullo, a atriz e cantora enverga coroa criada com lápis, pinceis e taças de champanhe que adereçam o vestuário neo mambembe de “Pippin”. Nada soa soa gratuito, e o visual ricamente bordado à la Gabriel Villela é moldura barroca perfeitinha para os arroubos do gogó (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

E o ator mirim Luiz Felipe Mello é destaque numa temporada na qual as crianças tomam de assalto musicais como “A noviça rebelde”.

Da esquerda para a direita, Nicete Bruno, Felipe de Carolis, Jonas Bloch (sentado), Guilherme Logullo e Adriana Garambone. Ao lado de Totia Meireles e Cristiane Pompeo, eles compõem a linha de frente da nova produção de Möeller & Botelho (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Entre o corpo de baile, os homens se sobressaem às mulheres, e vale destacar o competente Daniel Lack (“Como eliminar seu chefe”) e o carismático Paulo Victor (que todo mundo hoje conhece da TV, no corpo de baile do “Dancing Brasil”, da Xuxa) e que mostra nos palcos ter muito mais atributos que um sorriso perfeito para comercial de dentifrício.

Colorido como os anos 1970, o corpo de baile de “Pippin” se encarrega de acender – no visual e no movimento – o cenário medieval predominantemente terroso. A produtora de elenco Marcela Altberg soube escalar uma trupe que, no conjunto, confere ótimas caras e bocas, como pede esse musical (Foto: Divulgação)

Mas essa resenha não poderia fechar sem rasgar seda para Cristiana Pompeo (“Como eliminar seu chefe” e Cinderella). Figura ativa no cenário dos musicais no Brasil, com presença no vídeo em atrações como “Zorra” e “Deus salve o rei“, a artista engrossa uma fornada de atores que, nos últimos anos, vem se tornando prata da casa nesse tipo de produção. Além do timing cômico que, no cinemão, a alçaria a medalhão de qualquer diretor, de Woody Allen a Almodóvar, de Lubistch a Mel Brooks, ela ainda canta para caramba!

Gente que faz: embaixo à esquerda, Cristiana Pompeo rouba cena em “Pippin” como Catharina. Tal qual como outros talentos da cena musical teatral brasileira – Helga Nemeczyk, Édio Nunes, Gottsha e Rubem Gabira  – a artista costuma abrilhantar qualquer espetáculo, fazendo hoje parte daquele time de atores cuja presença é garantia certeira de sorriso na plateia (Foto: Divulgação)

* Colaborador do site e crítico de espetáculo, ele iniciou a carreira como bailarino e fez um pouco de tudo: jazz, dança contemporânea, musical de teatro, companhias de balé, festas temáticas, atrações infantis na TV como “TV Colosso”, programa da Xuxa e até especiais tipo “Criança Esperança”. Com o tempo, se tornou coreógrafo e dedica parte do seu tempo a montar performances para eventos corporativos e a lecionar dança, sendo pós-graduado em psicomotricidade, assunto que lhe tira faísca dos olhos. Para ele, a vida é puro movimento.

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