Ovacionada ao final da sessão, Lilian Valeska manda na lata, revelando sua generosidade de mama: “Gente, obrigado por tudo. Mas quero recomendar que vocês assistam também a ‘Ataulfo Alves – O Bom Crioulo’. Esse musical está em rolando aqui na cidade e é incrível”. O público continua batendo palmas de pé, sem acreditar que a estrela de “Amargo Fruto – A vida de Billie Holliday” – em cartaz no Rio – se preocupa em promover o trabalho dos amigos ao invés de deitar na fama, rolar na cama e se deleitar com o sucesso. Lilian é assim: graúda, de corpo e de alma. Por isso mesmo, impressionado com a incorporação em cena da diva maior do jazz e blues, ÁS correu para a coxia após a peça para bater aquele papo exclusivo com a atriz e cantora, que solta: “Você viu, né? Eu sou grandona, meus gestos costumam ser enoooooormes. Como não tenho o timbre vocal da Billie e nossas vozes são muito diferentes, fui pela emoção e pelos gestos. Marco toda hora esses bracinhos pequenininhos, essas mãozinhas que ela movimentava, como se tivesse assim, no be-bop. Vi alguns trechos de registros dela em vídeos no YouTube e tenho que me conter horrores nessas horas, mas fica igual”. Ao lado dela, o figurinista Marcelo Marques, responsável pelo figurino da obra, se derrete: “A Lilian tem essa coisa. Ela cai de cabeça e vira aquilo em que precisar se transformar. Massinha de modelar”.

Lilian Valeska: sem se preocupar em imitar Billie Holliday, a cantora-atriz esbarra na perfeição, incorporando a diva norte-americana através da emoção (Foto: Reprodução)
Como espetáculo, “Amargo Fruto” dá conta do recado sem se grandioso, indo na contramão das realizações em moda no eixo Rio-São Paulo atualmente: apesar da sala fazer a linha “teatrão” – o ótimo Teatro Carlos Gomes – a produção é enxuta, a começar pela duração: 140h corridos em um único ato, uma exceção em tempos de hipérbole.
A cenografia de Aurora dos Campos é pontual, mas não há troca de cenário; a iluminação de Paulo César Medeiros é precisa, como seria de se esperar de um trabalho do light designer, revelando a atmosfera de bas-fond da trajetória de Billie, entre a ribalta dourada do palco e o submundo das drogas, puteiros e cafetões; e, em cena, além de Lilian e dos quatro músicos, somente Milton Filho e Vilma Melo se revezam com competência em diversos papeis na hora de contracenar com a protagonista num texto sem gordura – de Jau Sant’Angelo e Ticiana Studart (que também faz a direção) – que até abusa de estrutura cronológica convencional para contar a trágica vida da cantora, mas é de extrema eficácia. O resultado disso tudo está ali: Lilian é Billie.

Entre Milton Filho e Vilma Mello, Valeska dá cabo do papel em espetáculo impactante, mesmo sem ser grandioso (Foto: Divulgação)
“Sou autodidata, cantava na Igreja Presbiteriana da Penha e mesclo isso com aquele suingue de preto brasileiro. Aliás, quer melhor escola do que cantar em coral?”, já começa assim Lilian em nossa conversa. “Meu universo é muito diferente do da Billie, sou bem calma, tenho uma filha (Yvina Raira, 15 anos) com quem sou colada e a base familiar grita. E 80% das músicas eu não conhecia, tive que cair de cabeça para acertar os tons, as inflexões. Pedi um help ao Rodrigo de Marsillac (pianista, um dos músicos em cena), mesmo com a preparação vocal da Mona (Vilardo). Deu no que deu”.
No espetáculo, standards como “Strange Fruit“, “My man“, “Night and Day“ e “Sophisticated Lady“ contagiam a plateia formada por um público maduro, que se afina com o repertório, mas também por uma garotada mais nova e ávida para descobrir um pouco sobre o mito que ajudou a cunhar o termo diva na música popular pop e acabou influenciando, direta ou indiretamente, todas as estrelas do Rhythm and Blues contemporâneo, de Mariah Carey a Jennifer Hudson, de Mary J.Blige a Beyoncé, de Whitney Houston a Rihanna. Contudo essa turma jamais passou – nem de perto! –, por tudo aquilo que Billie viveu: abandonada pela família ainda bebê, estuprada por um vizinho aos dez anos, lavando chão de prostíbulo aos 12 e ganhando uns trocados na cama com 14, ela passou inúmeras vezes por casas de correção e temporadas na cadeia, além de ser viciada num coquetel de heroína e álcool que lhe forneceu o tíquete só de ida para a cirrose hepática que lhe matou. Completamente diferente do dia a dia disciplinadíssimo de Lilian Valeska.

Holiday: da infância miserável e adolescência passada nas casas de prostituição até a fama como Lady Day (Foto: Divulgação)
ÁS pontua a importância do legado de Billie no repertório e na atitude para as gerações posteriores, alegando que, em “Saudades do Século 20“, (Companhia das Letras, 1994) Ruy Castro dedica um capítulo inteiro à estrela dentre as personalidades que, para ele, foram fundamentais na compreensão daquele período espremido entre a Primeira Guerra Mundial e a contracultura. A cantora não se faz de rogada: “Ela era do palco, amava esse ambiente de casa de show, de nightclub, do Harlem. Talvez preferisse as fases em que foi crooner do Artie Shaw e Count Basie, enfrentando a rotina dura de estrada, do que gravar disco”.
Para ela, o corpo a corpo com o público e com os músicos que a acompanhavam era tudo, “atitude que se observaria décadas depois em certas criaturas da MPB em seus respectivos percursos, aqui no Brasil”, completa Lilian. “Também sou meio assim, gosto do palco, de encarar a plateia de frente, no proscênio”.

Valeska na peça no musical “Vale Tudo: Tim Mais – o musical”: gogó afinado e presença cênica arrebatadora (Foto: Reprodução)
Atento, Marcelo Marques faz um adendo: “Na hora de compor o figurino, fui por aí”, diz, se referendo as aspecto historicista dos modelitos no palco. Ele revela: “Até usamos referências fotográficas para o vestido branco de show, mas os registros que se tem vão muito mais pelo visual que ela usava nesses ensaios com os instrumentistas, com blusa com laçada, saia midi e casaqueto para encarar o frio desses lugares do que no look de diva, toda paramentada com roupa de festa. O que ficou mesmo foi o contrário”.

Lilian Valeska: percurso contínuo no teatro musical com pouquíssimas aparições na TV (Foto: Reprodução)
A carreira frenética de Lilian Valeska, composta por sucessos seguidos no teatro – “Império“, “Ópera do Malandro“, “Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos“ (que lhe rendeu o Prêmio Reverência de Melhor Atriz em Papel Coadjuvante) e “Tim Maia, Vale Tudo – o musical“, combina com o temperamento da atriz, que se diz deliciada com a forma com que o sofrimento de Billie na vida contribuiu para o seu legado artístico: “Muitas vezes, a dor traz essa grandeza d’alma”. E, questionada sobre Billie ter passado por tanta perseguição profissional, inclusive do FBI, Lilian é categórica: “Ah, não foi só porque era drogada e rodava a baiana. No fundo, as autoridades marcaram em cima porque ela era negra numa época em que a segregação racial comia solta”.

Em cena no musical que conta a trajetória de Tim Maia: presença exuberante de Lilian contribui para o clima de desbunde do espetáculo (Foto: Reprodução)
ÀS resolve lançar a deixa: “Então, e como você lida com esse assunto? Como é fazer sucesso sendo negra e acima do peso, mesmo transbordando talento e tendo uma postura, digamos, sexy?” Lilian não se faz de rogada: “Muitas coisas ainda precisam mudar por aqui. Okay, temos hoje muito mais atores negros nas novelas, tipo cota, e já não se faz só papel de empregada doméstica e marginal. Mas ainda se faz. Muito. No cinema, Denzel Washington ganhou dois Oscar e com mais quatro indicações, Halle Berry arrebatou um. A gente cruza os dedos quando vê Octavia Spencer levando para casa o seu de ‘Melhor Atriz Coadjuvante’ em 2012 por “Histórias Cruzadas” (The Help, de Tate Taylor, 2011). Acho show, mas ainda é pouco e aqui no Brasil a coisa é mascaradíssima!”.

Octavia Spencer em cena de “Histórias Cruzadas” (2011): para Lilian Valeska, “preconceito racial no Brasil existe, embora seja mais mascarado que nos EUA pré-contracultura (Foto: Divulgação)
Sobre esse assunto, a estrela cita sua participação em “Sexo e as Negas” (2014), o seriado de Miguel Falabella na TV Globo, que durou apenas uma temporada e foi alvo de muitas críticas sobre ser preconceituoso: “Miguel ficou muito desgostoso com essa história toda. Era para a série durar; o texto era bom! É estranho ver os próprios negros assumindo posição de retaguarda e criticando, julgando e atribuindo leituras que não correspondiam à proposta da obra. Fomos julgados ao léu e a ideia do programa era o contrário daquilo que algumas associações esbravejaram, a fim de nos demonizar”.

Polêmica: Miguel Falabella ao lado do elenco principal de “Sexo e as Negas“. Seriado sofreu patrulha de grupos que consideraram o programa preconceituoso (Foto: Divulgação)
Sobre planos, Lilian se prepara para lançar dia 28 de outubro, no Theatro Net Rio, seu primeiro álbum solo, “Elas“, no qual interpreta divas importantes para sua própria persona: Elza Soares, Alaíde Costa, Elis Regina, Marlene, Elizeth Cardoso, Sandra de Sá, Alcione, Dolores Duran e Donna Summer. “A expectativa grita”, diz a moça. Alguma dúvida de que vai ser sucesso?
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