Numa cena passada em um retiro pessoal, na Ilha de Wight, uma Rainha Victoria (1819-1901) desgastada pela idade, artrose e décadas de reinado, vivida pela veterana Judi Dench, entrega os pontos ao seu novo confidente, o indiano e muçulmano Abdul Karim (Ali Fazal), por quem caiu de amor platônico: “Sou tão solitária. Qual o sentido? Tive nove filhos que praticamente se matam entre si, além de uma corte de bajuladores num império com um bilhão de súditos, muitos me odiando. É pesado o fardo”. Em exibição no Festival do Rio, “Victoria e Abdul” (Victoria and Abdul, de Stephen Frears, 2017) narra os últimos 15 anos da longeva soberana britânica quando sua afetuosa relação com o criado asiático, promovido a munshi (professor, na língua urdu) e mais tarde elevado a membro da Real Ordem Vitoriana, causou calafrios na preconceituosa corte real, nada predisposta a se relacionar com qualquer pessoa de pele negra que não dispusesse, no mínimo, de um carimbo de príncipe estampado na testa.

“Victoria e Abdul” é mais uma produção de Stephen Frears estrelada por Judi Dench, que já havia estrelado outras duas obras do diretor: “Sra. Henderson apresenta” (2005) e “Philomena” (2013), pelos quais concorreu ao Oscar de ‘Melhor Atriz’ (Foto: Divulgação)

Em “Victoria e Abdul”, Dench interpreta a Rainha Victoria na terceira idade, quando já se encontra sem paciência e entediada com a vida na corte, cochilando nos jantares reais. O estímulo à vida é reencontrado quando ela conhece o indiano Abdul Karim, encarregada de trazer-lhe uma moeda comemorativa mogul que traz a efígie da monarca, na Londres de 1887 (Foto: Divulgação)

A direção de arte, a cargo Sarah Finlay e Adam Squires, e o figurino criado por Consolata Boyle se encarregam de transformar “Victoria e Abdul” num dos costume pictures da vez, possivelmente disputando com “O estranho que nós amamos” (leia mais aqui e aqui), de Sofia Coppola, essas categorias na próxima temporada de premiações. À direita, na imagem, o ator Tim Pigott-Smith interpreta Sir Henry Ponsonby, secretário particular da rainha em sua última participação no cinema. O ator faleceu em abril, após participar de superproduções como “Gangues de Nova York”, “V de Vingança”, “Alice no País das Maravilhas” e “Red 2: aposentados e ainda mais perigosos” (Foto: Divulgação)
Com trama que lida com racismo e xenofobia, o longa-metragem esbofeteia com luva de pelica da Hermès a face do público em tempos de Trump, Breixit, Crivella, fundamentalismo religioso, o crescimento da popularidade de Bolsonaro e a ascensão de neonazistas na Alemanha, entre outras aberrações que parecem estar levando o planeta inteiro ao caos. Apesar do tom bem humorado em muitas passagens – fruto do olhar cínico que o diretor Stephen Frears tem da aristocracia e realeza, já revelado em outras produções suas como “Ligações Perigosas“ (1988) e “A Rainha“ (2006) – “Victoria e Abdul” versa sobretudo sobre a intolerância, tema que deveria ser pecado mortal num mundo globalizado, só que não.

Esplêndida como a rainha que representou o Império Britânico no seu apogeu, Judi Dench – que já concorreu seis vezes ao Oscar de ‘Melhor Atriz’ – pode finalmente ganhar sua estatueta (Foto: Divulgação)

Não é a primeira vez que Stephen Frears retrata a realeza britânica: além de “Victoria e Abdul”, o cineasta dirigiu Helen Mirren em “A Rainha” (2006), drama que relata os dias subsequentes à morte de Lady Di. Pelo papel de Elizabeth II, a atriz abocanhou o Oscar de ‘Melhor Atriz’ (Foto: Divulgação)

Aliás, o único Oscar que Dench já arrebatou – o de ‘Melhor Atriz Coadjuvante’ – também foi pelo papel de outra rainha da Inglaterra, a Elizabeth I de “Shakespeare Apaixonado” (1998), de John Madden (Foto: Divulgação)
Nesse ponto, a Inglaterra vitoriana, berço do multiculturalismo enquanto epicentro do vastíssimo Império Britânico, funciona como um espelho da sociedade contemporânea, mostrando que, no fundo, a humanidade, ao invés de andar para frente, continua rodopiando em círculos. Fora do páreo do Leão de Ouro, em Veneza, “Victoria e Abdul” foi bem recebido para logo depois colher boa aceitação no Festival de Toronto. Como uma soberana cansada de guerra, enfastiada com os protocolos da corte e carregando na lombar o peso que sua função representa, Dench está esplêndida nesta sua segunda interpretação da personagem histórica, podendo vir a receber sua oitava indicação ao Oscar, dizem.

Esta é a segunda vez que Judi Dench interpreta a carola monarca inglesa. Em 1997, ela viveu a Rainha Victoria em “Sua Majestade, Mrs. Brown”, que relata a amizade entre a monarca e o criado escocês John Brown, vivido por Billy Connolly, Esse foi o papel que a projetou e sua primeira indicação ao Oscar, em 1997 (Foto: Divulgação)

Assim como aconteceria com Abdul Karim anos mais tarde, John Brown também despertou a ira e o ciúme da corte, que não se furtou a fazer fofocas e engendrar maquinações para prejudicar o criado favorito da Rainha Vicoria. A diferença é que, no caso do indiano Abdul, havia a adição da enorme dose de preconceito racial forjado numa Inglaterra ao mesmo tempo aristocrática e burguesa, dominada pela separação de classes (Foto: Reprodução)
Confira abaixo o trailer legendado de “Victoria e Abdul” (Divulgação):
Em cartaz no Rio, “Churchill” (Idem, de Jonathan Teplitzky, Salon Pictures e outros, 2017) narra outro momento da história inglesa, os dias que antecederam aos preparativos para o Dia D, a invasão da Normandia que mudou os rumos da Segunda Guerra Mundial. Assim como a Rainha Victoria de Judy Dench, o primeiro-ministro vivido por um inspiradíssimo Brian Cox também outro velhaco atormentado por fantasmas do passado: encontra-se exausto, opondo-se aos planos forjados pelo comando militar britânico em conjunto com o general norte-americano Eisenhower (John Slattery, de “Mad Men“, ótimo).

Em cartaz sem grandes alardes, “Churchill” é ótima opção para ir ao cinema, sem se render a super-heróis, comédias bobas, sagas adolescentes e contos de fada live action. Na narrativa, o primeiro-ministro britânico se depara entre a própria consciência e a necessidade de não mais assumir a dianteira no front, se resignando ao papel de inspiração para os recrutas, deixando o protagonismo do campo de batalha para novas gerações de combatentes mais afinadas com novas tecnologias na guerra (Foto: Divulgação)
Confira abaixo o trailer legendado de “Churchill” (Divulgação):
Mas, se a soberana se ressente da solidão do posto, amplificada pela ausência prematura do Príncipe Albert e do outrora criado favorito John Brown, o Winston Churchill do roteiro de Alex von Tunzelmann traz nas costas toneladas de culpa pela morte de milhares de soldados ingleses na Primeira Guerra, ainda que tenha se consagrado como o grande herói que levou a Grã-Bretanha à vitória contra a Alemanha, pretendendo evitar que tudo se repita. Em ambos os casos, tratam-se de visões do quanto pode ser cansativa a liturgia dos altos cargos que pode levar um ser humano, quase sempre desprovido do direito de ser intimamente ele mesmo na função que ocupa, a abdicar de si mesmo para cumprir a representação do seu papel.

Comumente escalado por Hollywood como coadjuvante de luxo em superproduções como “Troia”, “X Men 2”, “Red: aposentados e perigosos” e “A Identidade Bourne”, Brian Cox brilha como o protagonista Winston Churchill nesta biografia histórica que relata as 96 horas que antecederam a invasão da Normandia na 2ª Guerra Mundial, Para o papel, o ator engordou 10 quilos (Foto: Divulgação)

Por trás de um grande homem sempre há uma grande mulher: “Churchill” não foge a essa máxima-chavão do senso comum. O roteiro de Alex von Tunzelmann valoriza a presença de Clemmie, a esposa do primeiro-ministro inglês responsável por não deixa-lo sucumbir aos momentos de depressão causados pela insuportável tensão que seu cargo lhe imputava. Miranda Richardson está soberba nas cenas em que aparece, sendo igualmente responsável, tanto quanto Cox, pelo pleno resultado da produção, que ainda conta com a boa atuação de James Purefoy (o Marco Antonio de “Roma”, da HBO) como o Rei George VI (Foto: Divulgação)
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