* Por Flávio Di Cola, de São Paulo
O que existe em comum entre Steven Spielberg, Pedro Almodóvar, John Waters e Tim Burton, além do fato inegável de que os quatro são grandes artistas e estilistas do cinema contemporâneo? Todos, em algum momento da infância e da juventude, sentiram-se tragicamente massacrados pela mediocridade, limitações e restrições impostas pelo seu meio familiar, religioso, social e – principalmente – urbano. Como suas mentes inquietas, solitárias, melancólicas, criativas e visionárias conseguiram sobreviver ao marasmo de uma vidinha provinciana em Cincinnati (Ohio) e depois Phoenix (Arizona) no caso de Spielberg, ou em Calzada de Calatrava – um cafundó da província de Castilha-La Mancha, onde Almodóvar nasceu? Como John Waters pode suportar os domingos modorrentos em Lutherville, subúrbio de Baltimore? A resposta é uma só: refugiando-se no escurinho dos cinemas de bairro com os olhos arregalados para qualquer filme que os alforriasse – mesmo que por algumas horas – do conformismo, da feiúra do mundo e do bullying inevitável pelo qual passavam – e ainda passam – os meninos sonhadores e artisticamente “dotados”.
E Tim Burton? Bem, a exposição “O mundo de Tim Burton“, atualmente em cartaz no Museu da Imagem e do Som-MIS de São Paulo, nos dá boas e numerosas pistas sobre as estratégias de fuga que Burton desenvolveu para não se afogar na mediocridade asséptica de Burbank, subúrbio de Los Angeles com aquele jeitinho de “comunidade-modelo” presente em tantos filmes norte-americanos, e onde ele nasceu, em 1958, e passou toda a juventude.

A exposição O mundo de Tim Burton foi originalmente montada pelo MoMa de Nova York, em 2009. Depois viajou para Melbourne, Toronto, Los Angeles, Paris e Seul. A atuação versão passou por Praga, Tóquio, Osaka e Brühl (Alemanha) antes de aportar no MIS de São Paulo. O roxo, tom místico e mágico, predomina na programação visual desde o exterior do museu (Foto: Flávio Di Cola)
BEM-VINDO AO INFERNO LÚDICO DE TIM BURTON
A exposição reúne cerca de 500 itens, alguns mostrados pela primeira vez ao público. Para acessar ao mundo de Tim Burton, o visitante é “engolido” logo de cara por uma boca monstruosa, de traços infantis, inspirada nos patéticos parques de diversões do passado:

Parque temático: mostra “O mundo de Tim Burton” introduz o visitante no universo lúdico do diretor, possibilitando a recriação de sensações similares àquelas vistas nas telas (Foto: Letícia Godoy / Divulgação)
Embora Tim Burton morasse a poucos quilômetros das gigantescas “fábricas de ilusões” de Hollywood – da sua casa era possível ver a parte traseira do famoso letreiro do Mount Lee – a vida em Burbank só foi suportável porque ele consumia boa parte do seu tempo devorando uma dieta cinematográfica mais eclética do que uma feijoada completa: desde clássicos europeus até pérolas do trash nos gêneros terror, ficção-científica, fantasia e mistério, principalmente aquelas expelidas pelos estúdios japoneses como Toho e Daili. Quando finalmente integrado ao sistema hollywoodiano para o qual já criava obras-primas da imaginação cinematográfica, Burton não deixou por menos: retratou com cáustica ironia o hipócrita e volúvel sistema comunitário dos subúrbios no seu filme mais autobiográfico – e para muitos críticos, sua obra mais emblemática e bem-sucedida -, “Edward Mãos de Tesoura“ (Edward Scissorhands, 1990, 20th Century Fox).
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Fuga, vingança ou crítica moral ao mundo, busca de transcendência espiritual, flerte com a morte, exercício de nostalgia, celebração ou homenagem ao cinema e à literatura dark, ou simplesmente expressão de genialidade? Sejam quais forem as razões pelas quais Tim Burton se entregou e se perdeu, com tanta paixão e desde muito jovem, ao seu mundo tão particular de fabulação, o resultado disso tudo pode ser conferido nessa riquíssima exposição do MIS que retraça a trajetória artística desse diretor que realizou a proeza de conquistar a admiração do grande público sem renunciar às suas visões artística e existencial particularíssimas, cultivadas desde os anos 1970.

Tio esquisitão: marcado pelas influências dark oitentistas, mas detentor do curioso olhar de criança, o diretor Tim Burton constantemente se autoreproduz através de sua produção cinematográfica (Foto: W Magazine/ Reprodução)
Na verdade, a concepção expográfica da mostra “O mundo de Tim Burton” é largamente responsável por ela ter se transformado no maior hit da atual programação cultural paulistana. O acréscimo de 150 novos itens em relação às montagens anteriores, associado à disponibilidade de grandes espaços em vários níveis e ao fato de que o apelo do nome “Tim Burton” é muito forte no Brasil, principalmente entre o público jovem, obrigaram a curadora Jenny He – responsável por algumas das mais concorridas exposições da história recente do MoMa de Nova York – a encontrar soluções específicas para a versão brasileira, juntamente com a equipe do MIS de São Paulo.
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“Menina azul com vinho”, óleo sobre tela de 1997, pertencente à coleção particular do artista. Crianças e meninas-cadáveres que voltam à vida depois de grotescamente costuradas e remontadas sejam, talvez, a principal marca registrada da galeria de “monstros” de Tim Burton (Divulgação)
Assim, o conceito dominante nesta nova montagem passou a ser o de proporcionar ao visitante a sensação de imersão, de viagem e de estar se aventurando no interior mesmo do cérebro criativo de Tim Burton. Por isso, o percurso da visitação não foi dividido, como seria o previsível, pelos tipos de criação (pinturas, desenhos, ilustrações, filmes, fotografias, esculturas, textos e memorabilia), e sim através de esferas emocionais e afetivas representadas pelos cinco sentimentos dominantes no conjunto da obra do artista: horror, humor, felicidade, angústia e encantamento.

Entre o humor e o macabro: Burton consegue transformar o insólito em risível e o terror em ternura, como na divertida cena da sala de espera de um médico de entidades do além, de “Os fantasmas se divertem” (Beetlejuice), seu primeiro longa-metragem (1988)

A aquarela e pastel sobre papel de 1997, sem título e integrante da “Série Menina”, é um compêndio de temas e figuras recorrentes do universo de Tim Burton tirados dos filmes de ficção científica trash dos anos 1950-60 (Divulgação)

O sempre assustado e carente Menino Mancha (Stainboy) é uma das figuras mais queridas do playground macabro de Tim Burton, a ponto de ser ele o anfitrião do site oficial do artista. Clique www.timburton.com e percorra a galeria virtual de obras de Burton ao lado do simpático bonequinho (Divulgação)
É através desse olhar transversal que se misturam no mesmo ambiente obras realizadas em suportes tão díspares como os storyboards de filmes televisivos baseados nos antigos contos de fada; seus primeiros curtas, realizados no início da década de 1970 na bitola 8mm e nunca lançados; esmerados desenhos feitos em guardanapos e emoldurados em grandes quadros com 45 peças cada; esboços do personagem vivido na tela por Johnny Depp em “Edward Mãos de Tesoura“; bonecos dos personagens Victor, Edgar e Elsa Van Helsing da animação “Frankenweenie“ (idem, curta de 1984 e longa de 2012); ou os cast & crew books – encantadores diários de filmagem antes só disponíveis para as equipes que trabalharam com Tim Burton em produções como “Peixe grande e suas histórias maravilhosas“ (2003), “Sweeney Todd – O barbeiro demoníaco da rua Fleet“ (2007), “A fantástica fábrica de chocolate“ (2005) ou “Sombras da noite“ (2012).
Filmografia essencial do diretor Tim Burton:
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O lado lúdico dessa expedição ao mundo de Tim Burton fica por conta de um mini-tobogã que serve para interligar os dois andares expositivos – uma idéia que provavelmente foi inspirada na sensação de instabilidade e estranheza que Alice certamente experimentou quando despencou no buraco que a conduziu ao País das Maravilhas, conforme o clássico de Lewis Carroll, cuja versão adaptada para o cinema por Burton em 2012 foi um estrondoso sucesso de bilheteria, o maior de toda a carreira do cineasta, apesar das críticas mornas.

Programado para estrear em 27 de maio, “Alice através do espelho” (Alice Through the Looking Glass, Walt Disney Pictures, 2016) dá continuidade à saga em live action dirigida por Tim Burton em 2010, que dessa vez se restringe à função de produtor, conferindo a direção à James Bobin (Foto:Divulgação)

Apesar de não estar no comando do set em “Alice através do espelho”, Tim Burton mostra sua mão firme de produtor na concepção visual do novo vilão Tempo, encarnado por Sacha Baron Cohen (Foto: Divulgação)

Nesta nova produção com a assinatura de Burton, Alice retorna às profundezas do País das Maravilhas para lidar com uma ameaça que é fundamental nos dia de hoje: o tempo. Ou a falta dele! (Foto: Divulgação)
À saída desse universo “burtoniano” sui generis, algumas almas mais rabugentas podem até achar que o artista não passa de “uma criança grande”, cujos sofrimentos e terrores da infância não superados acabaram por transformá-lo numa mistura de Walt Disney com Zé do Caixão. Tim Burton provavelmente riria docemente desse comentário, sem envergonhar-se, pois sabe que ele guarda um fundo de verdade. Se o mundo de Burton vive imerso em trevas e suas crianças são verdadeiros monstros, talvez este desabafo feito ao editor Kristan Fraga no livro de entrevistas “Tim Burton: interviews (Conversations with filmmakers)“ nos ajude a entendê-lo melhor: “Eu não aprovo o que o nosso mundo faz das crianças. Há excesso de informação, de imagens, de amor, de presentes, de comida, de competições. E nós não sabemos mais protegê-las. Pelo contrário, nós não paramos de expô-las a situações competitivas. Essa atitude é tanto uma forma de desistência como de cinismo, uma maneira de estragá-las enquanto se arranja um pouco de paz”.

Remake de “A Fantástica Fábrica de Chocolates” (2005): conto de fadas moderno que um fundo moral dentro do seu universo lúdico questiona os rumos que a infância atual está tomando (Foto: Divulgação)

“Rodeado”, óleo e acrílico sobre tela de 1996 é um delicioso exemplo da visão pessimista infantil (mas nem por isso menos possível) de Tim Burton sobre as chances de sobrevivência do nosso planeta (Divulgação)

Alienígenas tão implacáveis quanto debochados promovem uma chacina no planeta Terra sob o testemunho de um um atônito Pierce Brosnan em “Marte Ataca” (1996), um dos mais subestimados, mas deliciosos longas de Burton (Foto: Divulgação)

O Mundo de Tim Burton é um continente complexo de influências inumeráveis que se mesclam, negam-se ou se completam. Os curadores tentaram organizar tudo através de um Painel de Influências na sugestiva forma de um polvo que tudo agarra e devora, instalado logo na entrada da exposição (Foto: Letícia Godoy / Divulgação)
O MUNDO DE TIM BURTON: INFLUÊNCIAS E CORRESPONDÊNCIAS
A curadora Jenny He, em colaboração com a Tim Burton Productions, permitiu alterar radicalmente o formato da exposição. Em nome de um certo didatismo, a mostra procurou ressaltar a rede de influências artísticas e culturais que impactaram a cabeça inconformista, solitária e impressionável de Tim Burton desde a sua infância. Que tal conhecer algumas?
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Tim Burton nunca escondeu que o seu filme favorito entre todos que assistiu em seções corridas de cinemas de bairro para fugir da vidinha suburbana de Los Angeles é “A invasão dos Gargântuas”, ficção-científica super trash no gênero kaiju, palavra nipônica para “monstro”. Este trailer prova que Ed Wood, o pior diretor do mundo e homenageado por Tim Burton numa cinebiografia de 1994, tinha alguns discípulos até no País da Cerejeiras em Flor:
War of the Gargantuas (1968) international trailer por filmow

A reconstrução de um mundo todo próprio através da imagem, e não do texto, marca tanto a cinematografia do genial diretor Federico Fellini (1920-1993) como a de Tim Burton. Outro ponto comum entre os dois artistas é o hábito de preparar os filmes através de esboços grotescos e estranhos, frutos de irrupções do inconsciente, como este desenho da vendedora da loja de tabaco para o filme “Amarcord” (1973) (Reprodução)

A poderosa influência do escritor e poeta norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1841) sobre Tim Burton não se deu somente através da leitura dos seus contos policiais, de mistério ou terror, mas também pelas adaptações cinematográficas estreladas por Vincent Price e dirigidas por Roger Corman nos anos 1960, hoje cultuados clássicos do filme “B” (Reprodução)

A pobreza de astros do estúdio da Universal obrigou-a a criar um star system só de monstros que praticamente definiram o gênero horror no cinema ao longo de quatro décadas, como o Fantasma da Ópera (Lon Chaney), Drácula (Bela Lugosi), Frankenstein (Boris Karloff) e sua noiva (Elsa Lanchester), a Múmia (Karloff) e o Lobisomen (Claude Rains), todos apaixonadamente amados por Tim Burton (Reprodução)

É claro que Tim Burton adora Carnaval! Qual é a festa que inverte a ordem de todas as coisas, que engana a morte e a doença, e brinca com os horrores da vida? Sua obra está coalhada de citações carnavalescas, como a sua obsessão por máscaras. Antes de conhecer a exposição sobre a sua carreira no MIS de São Paulo, Tim Burton fez questão de vivenciar o Carnaval do Rio de Janeiro, mas não conseguiu assustar ninguém (Foto montagem: iG/AgNews/Divulgação)
Serviço:
O mundo de Tim Burton
Museu da Imagem e do Som – MIS
Av. Europa, 158, Jardim Europa, São Paulo.
Até 15 de maio de 2016.
Horário de visitação: 11h às 20h (terça a sexta-feira); 9h às 21h (sábados); e 11h às 19h (domingos e feriados).
Ingressos: aos domingos, R$ 12 (inteira) e R$ 6 (meia), na bilheteria do MIS. Terça-feira, entrada gratuita com retirada de senha na bilheteria do MIS.
Classificação etária: Livre.
Telefone: (11) 2117-4777
Devido à grande procura, recomenda-se que os interessados se informem previamente junto ao museu sobre a disponibilidade de ingressos.