Foi preciso a passagem do tempo para o público perceber aquilo que no fundo sempre soube: o quanto a apresentadora, atriz, produtora e modelo Xuxa Meneghel é composta daquela mesma aura mágica que envolve artistas capazes de emocionar, encantar e seduzir o grande público na tessitura de personalidades globais que não apenas imprimiram sua marca no showbizz, mas alcançaram o status de arquétipos, de Charlie Chaplin e seu vagabundo Carlitos à loura ingênua, sexy e voluptuosa Marilyn Monroe, passando pela latina brejeira tropicalista Carmen Miranda, o camaleão David Bowie, a Rainha do Pop Madonna, a junkie cool Amy Winehouse e o eterno rebelde sem causa James Dean. Sim, não é exagero afirmar que a gaúcha Xuxa enquanto produto de massa é iguaria finamente gratinada, primeiramente por todos que a puseram em cena e, depois, por ela mesma quando assumiu as rédeas num roteiro de empoderamento afinadíssimo com o discurso atual. É somente esse distanciamento temporal – desde o seu surgimento como cover girl na virada dos anos oitenta, catapultada à condição de bola da vez durante seu relacionamento com Pelé, até agora, quase 45 anos depois e intensamente celebrada pela entrada em sua sétima década de vida – que permite que a Rainha dos Baixinhos seja percebida em toda a sua potência, o que fica claro em “Xuxa, o documentário”, que acaba de ser lançado nessa quinta-feira (13/7) no GloboPlay.

Confira abaixo o trailer oficial de “Xuxa, o documentário” (Divulgação):

O impacto causado por essa produção da Endemol Shine Brasil, geralmente envolvida com reality shows, tem razão de ser: durante todo esse percurso, Xuxa jamais saiu dos holofotes, seja na televisão, cinema, capas de revista, reportagens, aparições como celebridade convidada em semanas de moda, na plateia ou na catwalk, ativista em prol dos animais, veganismo ou antietarismo, como mãe de top model e, claro, na exposição nem sempre voluntária de sua vida privada. Xuxa vende e o tempo se encarregou de provar que, podem ter mudado os produtos, mas seu potencial de garota-propaganda não perdeu o fôlego. E mais: nunca caiu o pano. A palavra ostracismo não existe no vocabulário da estrela. Pelo contrário, a constância da sua presença, no nosso cotidiano, fez sua trajetória parecer tão natural que a gente até esquece o quanto é fabulosa. É como se fosse moleza Pharrell Williams produzir hits ou Fred Astaire sapatear.

Dirigido por Pedro Bial, "Xuxa, o documentário" é contundente narrativa sobre construção de sucesso, abuso e empoderamento.
Na festa de pré-estreia de “Xuxa, o documentário”, no Rio, Xuxa brilhou ao lado da filha, a top model Sasha Meneghel. Na ocasião, ficou claro o quanto a artista, aos 60 anos, consegue manter o frescor da personalidade cativante após mais de quatro décadas de exposição. Na entrada do cinema, uma legião de fãs de todas as idades se acotovelava disposta a tirar casquinha do mito. (Foto: Divulgação)

Sem que ninguém se tocasse, Xuxa tem sido overdose em nossas vidas num patamar que transcende a mera lógica dos fãs, mas tangencia todas as camadas sociais, como todos os pop stars citados acima. Com um detalhe: enquanto Marilyn, Winehouse, Miranda ou Dean morreram muito jovens, cristalizando suas imagens no auge, Xuxa é um fenômeno difícil de ser explicado: mal completou 60 anos, com aquelas deliciosas rugas no canto dos olhos deixando claro (felizmente) que não são de recém-nascida, a moça permanece magnética, sem parar de produzir e de igual para igual com suas personas mais novas, aspecto que nem a transgressora Madonna, importantíssima tanto para a cultura pop quanto para a evolução do comportamento e pouco mais velha que Xuxa, conseguiu.     

Longevidade artística: em 2019, Xuxa estrelou a campanha da marca carioca The Paradise, de Patrick Doering e Thomaz Azulay, filho de Simão Azulay, para quem Xuxa protagonizava desfiles 40 anos antes pela grife Yez, Brasil. (Foto: Divulgação)

Em um exercício de ludicidade, é fácil imaginar Xuxa representada num Colecionável Funko, daqueles que significam uma personalidade famosa, real ou fictícia, em brinquedo através dos seus códigos visuais, como a Rainha Elizabeth II com seus looks monocromáticos de tailleur, chapéu e bolsa, a Princesa Leia de Star Wars e seu penteado headphone ou Freddie Mercury com bigode, jaqueta de couro, calça branca atochada e tênis. A começar pelo look clássico do “Xou da Xuxa”, seu passaporte de transição da TV Manchete para a Rede Globo, com direito a xuquinhas louras, bolero com ombreiras giga, saia ou short em couro curtinho e botas brancas 7/8, existe um sem-número de figurinos semioticamente possíveis de representarem Xuxa, tal quais todas as celebridades citadas neste artigo. E isso, óbvio, é uma senhora bandeira do quanto a construção de sua imagem é poderosa desde o princípio.

Dirigido por Pedro Bial, "Xuxa, o documentário" é contundente narrativa sobre construção de sucesso, abuso e empoderamento.
“Marquei um X no seu coração”: o arquétipo futurista da loura com jeito de criança e visual sapeca, bem anos oitenta, virou de representação alto valor afetivo para várias gerações. No lançamento do documentário, Xuxa posa diante da exposição de looks armada pela GloboPlay com a valiosa curadoria da irmã Solange Meneghel. (Foto: Divulgação)

A direção cirúrgica de Pedro Bial e Cássia Dian em “Xuxa, o documentário” se esmera em revelar logo de cara esse caráter espetacular, resgatando já no primeiro episódio da série a pancada que Xuxa causou na vida das pessoas – uma novidade naquele país em transição da ditadura para a democracia –, através de imagens de arquivo de gravações de programas de auditório ou de shows em estádios, no Brasil e lá fora, com direito à comoção dos fãs, durante turnês nas quais ela os eletrificava de igual para igual com Os Beatles, como naqueles registros fílmicos do início dos anos sessenta.

Superstar: a partir do programa de TV, o império financeiro da artista se desdobrou em filmes de cinema, DVDs e hits e megashows que lotavam arenas. na imagem, “Xou da Xuxa 88” foi a terceira turnê de Xuxa Meneghel e tinha como base o álbum “Xou da Xuxa 3“, além de sucessos dos discos anteriores. (Foto: Reprodução)

Se Os Fab Four preconizaram, ao lado de Elizabeth Taylor, aquilo que viria a ser conhecido 20 anos depois como a Era das Celebridades, Xuxa se encarregou em seu tempo de consolidá-la por aqui. Não é pouco coisa. O doc impressiona por nos fazer lembrar este fato tantas vezes banalizado pela sua presença ininterrupta em cartaz, assim como evocar sua beleza irresistível na flor da idade e destacar sua espontaneidade cativante responsável por conquistar não somente os baixinhos, mas seus pais.

Dirigido por Pedro Bial, "Xuxa, o documentário" é contundente narrativa sobre construção de sucesso, abuso e empoderamento.
Ilariê atemporal: aos 60 anos dotada de pura potência, a apresentadora exala seu vigor diante de cenário instagramável que lança sua narrativa documental. (Foto: Divulação)

O roteiro inteligente consegue driblar a má-qualidade de conservação das sequências gravadas em sistemas analógicos, como fitas U-matic, nos anos 1980/90, com ótimas entrevistas atuais de gente fina, elegante e sincera que fez parte da carreira de Xuxa desde o início. São depoimentos que vão do dono da multimarcas para a qual desfilava ainda adolescente na cidade fluminense de Coroa Grande, para onde a família se mudou quando veio do Rio Grande do Sul, a rostos conhecidos como os de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, Superintendente de Produção e Programação da TV Globo, do coreógrafo Oswald Berry e de Maurício Shermann, diretor que, seguindo seu faro, escalou Xuxa para apresentar o “Clube da Criança” na recém-inaugurada Manchete, em 1983. Essa turma, que fez a televisão brasileira acontecer, divide a tela com ilustres anônimos do naipe de gente que faz, como o segurança que a protegia da fúria dos tietes e o cenógrafo que criava maravilhas como a nave espacial da qual surgia nas manhãs da Globo. Eles a acompanharam desde sempre e se acabaram se tornando testemunhas do sucesso meteórico da sex symbol transmutada em ícone infantil.

Ao ser descoberta como apresentadora infantil, Xuxa conseguiu o impensável: além do sucesso avassalador – e do rio de dinheiro – virou símbolo de uma era, ultrapassou fronteiras, revolucionou o então estagnado mercado infantil de moda e ainda se transformou personagem maior que a vida, tudo junto e misturado. (Fotos: Reprodução)

Ao estabelecer essa ponte entre a criatura milimetricamente construída, seja por raposas ávidas por criar uma fábrica de dinheiro, seja por visionários que vislumbraram essa mina de ouro, e o talento natural de Xuxa paulatinamente lapidado até torná-la a esponja perfeita para sorver essas expertises que a fizeram explodir para, em seguida, assumir o comando após engolir todos os sapos, Bial e Dian constroem um dos melhores documentários já produzidos pela GloboPlay, que vem se especializando em veicular esse tipo de cinema, das realizações próprias àquelas compradas de distribuidores estrangeiros.

Confira abaixo o teaser oficial de “Xuxa, o documentário” (Divulgação):

Mais que isso, a dupla de diretores, ao lado da roteirista Camila Appel, abraça nessa narrativa o mito grego da Galatea – estátua feminina tão perfeita que, esculpida por Pigmalião, acabou fazendo o escultor se apaixonar por ela. Moldada como sucesso por tantos pigmaliões, Xuxa conseguiu um surpreendente feito que nem a figura mitológica atingiu: fez o mundo inteiro se apaixonar por ela para depois ir além. Ao arrematar todos os corações, foi a vez de se imbuir de força para, amadurecendo como celebridade e mulher, arrebatar seu amor-próprio.                     

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